segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Rafael Altério


Milagreiros, graças a Deus

        “Elegbá veio, sou eu, elegbá, laroê/ Com Zumbi que veio de elegbá/ Pode tu, Zumbi Bará, pode ir/ Pode ir lá/ Que teu povo veio chamar”, versos de “Zumbi Bará” (Rafael Altério e Paulo César Pinheiro). Assim canta Rafael Altério, abrindo seu CD Santo de Casa (independente, com patrocínios). Aceitando o chamamento, levou consigo sua brasilidade e seus santos de casa: amigos de fé, músicos de boa cepa, todos integrados no papel de solidificar a mistura da sonoridade harmônica com o fervor rítmico, resultando em música de brasileira qualidade.
        Para tanto, contribuem os arranjos – a maioria de Rafael Altério (a direção artística é dele e de Celso Viáfora) – e as percussões, principalmente quando estão nas mãos de Kleber Benigno (Paturi), Márcio Jardim e Nazaco Gomes, os meninos paraenses do Trio Manari. Aos tambores amazônicos se juntam as teclas dos pianos (Paulo Calazans, Breno Ruiz e Rafael Altério), o acordeom (Breno Ruiz), a bateria (Gabriel Altério), a flauta (Teco Cardoso), as cordas dos violões (Luiz Ribeiro, Dani Black, Pedro Altério, Dani Altman e Rafael Altério), o baixo (Marcelo Mariano), a guitarra (Léo Amuedo e Dani Black) e o cello (Mariza Silveira). Toda essa gama infinita de sons vigorosos dá a Rafael o direito de impor com dignidade o seu vozeirão – sua voz tem o seu tamanho. Cercado de amigos, desde os instrumentistas até o coro feminino, ele não poderia deixar de também trazer para perto de si os parceiros letristas, Paulo César Pinheiro, Celso Viáfora, Joãozinho Gomes, Breno Ruiz e Rita (esposa) e Pedro Altério (filho). Todos santos da casa dos Altério, milagreiros, graças a Deus.
        Ao ouvir as onze faixas do CD, entende-se perfeitamente o que Rafael quer com a música e o que ele ambiciona alcançar com ela: para Altério, música é missão cultural. Sabedor de tamanha exigência para consigo próprio e para com sua obra, trata de criá-la como quem concebe um filho.
        A pegada da pele dos tambores está presente em quase todas as faixas. Com o balanço comendo solto, impossível aquietar o esqueleto. E segue o som, até que chega um momento de calmaria: André Mehmari tocando ora piano acústico, ora acordeom, e Rafael cantando, dele e Rita, “Flor de Rio”.
        Logo a seguir, “Quando o Galo Cantar”, também dos dois. Os tambores do Manari e a flauta pontuam o início do canto. O pandeiro (Douglas Alonso) tem vez e segue até que o violão de aço, a bateria e o baixo, este com uma puxada de intensa pujança, juntem seu som à voz. A caixa da bateria conduz agora. O coro feminino reforça. O violão e a flauta fazem breve intermezzo. A melodia volta com Rafael e o coro... Meu Deus!       
        É a hora do sincretismo musical/religioso/afetuoso de Altério se despedir. E ele canta a letra de Joãozinho Gomes para “Camarada de Ogã”: “Vou pela manhã, tô indo agora/ O dia raiou fora de hora/ Vai junto de mim/ São Sebastião crivado/ São Bartolomeu irá ao meu lado”.
        A casa dos santos de Rafael Altério está aberta.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Luiz Millan - Tocando nas nuvens


Tocando nas nuvens

        Entre Nuvens (independente) é o primeiro disco de Luiz Millan. Bom compositor, letrista inspirado, o trabalho é um belo cartão de visita. A partir dele, sua passagem pela grande porta da música brasileira de qualidade se mostra real.
        Michel Freidenson (arranjador e diretor musical) deu ao seu teclado e às flautas de Léa Freire (com direito a saboroso fraseado da flauta baixo) a responsabilidade de começar “E o Palhaço Chorou” (Mozar Terra e Luiz Millan), música que abre os trabalhos. Junto com eles vão os violinos de Luiz Amato e Esdras Rodrigues, a viola de Emerson De Biaggi e o violoncelo de Adriana Holtz. O som resultante cria a beleza que deságua no doce cantar de Ana Lee. O chorinho de boa cepa segue brejeiro. O teclado toca notas de suave requinte. A cortina do naipe de cordas deságua na amplidão da boa música. Afinada que só ela, Ana Lee dá à melodia o valor que enriquece os versos de Millan e a harmonia de Mozar.
        “A minha máquina escreve letras sem pudor/ E frases perdidas entre a metafísica e o amor”, versos de “Montparnasse” (Plínio Cutait e Luiz Millan), traduzem o objetivo poético de Millan. Para cantá-los, Consiglia Latorre... Deus do céu! O que é a voz dela? Agudos límpidos, emoção à flor da pele, respiração impecável... O acordeom (Toninho Ferragucci) e o piano iniciam a canção quase frágil, tamanha é sua delicadeza. O acordeom se destaca. O violão toca a harmonia, porém se faz protagonista num breve dedilhar de notas uníssonas com o canto. O intermezzo de acordeom e violão, com o piano a fazer-lhes cama, é especial.
        Ana Lee inicia “Mito” (Luiz Millan e Ivan Miziara), uma das quatro músicas do CD para as quais Luiz Millan criou a melodia, não os versos. Mais uma vez, o arranjo de Freidenson usou cordas e teclado, além de baixo (Sylvinho Mazzucca), cuja pegada reforça a levada sem tirar-lhe a suavidade, e bateria (Alex Duarte), que se vale dos pratos para acentuar a força dos versos, sem, no entanto, encobri-los. Tudo isso encarrega-se de vestir uma das mais belas canções do CD. Canção que parece feita para a voz de Ana Lee, pois, ao cantá-la, transforma-a numa ode à paixão. O intermezzo de teclado e cordas é belo em sua fortaleza. Ao retomar o canto, Ana Lee delicia-se com palavras: “Tens esta partitura/ Nas vértebras finas/ Tua música pura/ Rima íntima”.
        “Outono” (Luiz Millan e Michel Freidenson), um dos dois temas instrumentais do CD, tem no sax soprano de Teco Cardoso o ponto de partida. O teclado o acompanha. As cordas também. Mais um belo arranjo de Michel. O acordeom de Ferragucci chega para aumentar a temperatura e o prazer de fazer da música fonte de deleite estético.
        Instrumentistas, cantoras, compositores, arranjadores, um grupo coeso que só ratifica a excelência musical, instrumental, vocal e poética de um trabalho que abre a possibilidade de mais um compositor se juntar ao time dos que fazem da música brasileira a mais rica e diversificada do mundo: Luiz Millan.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Sérgio Sampaio


O bloco volta à rua

        O LP Sinceramente, de Sérgio Sampaio, lançado de forma independente em 1973, está de volta à praça. Se por acaso você, leitor, acha que nunca ouviu falar de Sérgio Sampaio, tente cantarolar este refrão: “Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender”. Lembrou? Pois é... Sérgio Sampaio arrasou nesse baita sucesso.
        Logo após o estouro nas vendas do compacto que continha “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, apresentada no VII Festival Internacional da Canção da TV Globo (1972), e não conseguindo igual êxito comercial nos três LPs que vieram a seguir, Sampaio foi tachado pela indústria fonográfica de “artista difícil” e pela mídia de “autor maldito”.
        Seu primeiro LP (1973) tem como título o mega hit Eu quero é botar meu bloco na rua. Em 1976 veio o segundo: Tem que acontecer. E, relançado agora em CD, Sinceramente (1982) foi seu terceiro e último long play solo. Com onze músicas suas, sendo uma (“Cabra Cega”) em parceria com Sérgio Natureza, Sampaio abriu o peito e demonstrou o quanto sua alma estava dilacerada. Os tempos andavam bicudos...
        Contando com a participação talentosa de Renato Piau (pianista e parceiro de Sérgio Sampaio desde sempre), Zezinho Moura (piano elétrico), Ricardo Feijão (baixo), Charles Chalegre (bateria), Oberdam Magalhães (sax e flauta), Luciano (arp strings), Serginho Boré (percussão) e com o violão acústico de Sérgio Sampaio, Sinceramente (Saravá Discos) se revela um CD bem remasterizado, cujo som tem brilho e profundidade.
        Além de samba, boleros e canções, o álbum tem baladas que despretensiosamente namoram o brega, sem, contudo, permitir que se lhes pespeguem tal adjetivo. Pois elas lembram, na verdade, a pujança transformadora das baladas que Raulzito tão bem difundiu e Sérgio adotou.
         “Essa Tal de Mentira” é uma canção na qual a boa voz de Sampaio é embalada pelo som dos violões (um improvisa, enquanto o outro harmoniza) e do baixo. Os versos ecoam seus sentimentos: “Com a alma partida/ Dando com o corpo nas grades da cela da vida/ Como num mar de paixão/ Náufrago que estende a mão/ Agarro o meu violão/ E canto uma canção”.
        Luiz Melodia divide o canto com Sérgio no samba “Doce Melodia”, homenagem de Sampaio a Luiz Melodia. Divertidos e cheios de ginga, os dois se esbaldam e esbanjam malandragem.
        O violão começa “Nem Assim”. A voz de Sérgio vem firme, entoando as dores da separação, mas tudo com muito bom humor.
        Em “Sinceramente”, a música que dá título ao disco, os violões acompanham a voz que vai aos agudos para cantar notas da melodia. Os versos são um louvor à independência, no sentido mais amplo do termo: “Não há nada mais tranquilo/ Do que ser o que se sente/ E poder amar, perder, chorar/ Depois ganhar/ Assim sinceramente”.
        Vítima de pancreatite, Sérgio Sampaio nos deixou em 15 de maio de 1994. Mais um dos grandes compositores que a música brasileira perdeu para o alcoolismo. Pena.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Patrícia Ahmaral


O poder de uma cantora

        Depois de lançar dois discos, a cantora e compositora mineira Patrícia Ahmaral volta à cena comSuperpoder (gravado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, com o patrocínio da Vivo).
        Produzido pelo contrabaixista Fernando Nunes, também arranjador das treze músicas do álbum (em duas delas dividindo o trabalho com outros três arranjadores), contando com participações especiais de Lucinha Turnbull (em “Trilha de Luz”, da própria Lucinha) e de Chico César (em “Sorry, Baby”, uma das três músicas de Patrícia presentes no disco), tendo no repertório desde Alceu Valença, Lula Queiroga (autor da faixa-título) e Belchior até Zeca Baleiro, Caetano Veloso e Torquato Neto, passando por Totonho, Vander Lee (presente com duas músicas – uma delas, “Revoada”, em parceria com Ahmaral), Paulo César Barros, Getúlio Cortes, Carlos Tê e Hélder Gonçalves, Superpoder justifica o título: Patrícia é poderosa.
        Seu poder maior advém da força do seu cantar. Levando as interpretações às últimas conseqüências, sem medo de se fazer intensa ou demasiada, as palavras lhe saem como petardos que miram o entusiasmo do ouvinte, trazendo-o pelo ouvido para a roda de fogo. A chama de seu canto acende o prazer de vê-la afinada, sem deslizes que pudessem comprometer o seu desempenho.
        Sua poética é forte, como mostram os versos da sua “Do Querer” e de “Sorry, Baby”, uma parceria com Chico César – que com ela divide o canto: Pelas mazelas/ Pelo medo/ Pelo soco na cara/ Pelo tapa na veia/ A navalha/ Pela noite escura/ Pela bala/ Pela infância bandida/ Pela fumaça (...)
        Os arranjos, tanto de uma quanto da outra, têm zabumba, triângulo, coquinho, caxixi, block, pandeiro árabe e ganzá nas mãos de Bruno Santos. Têm ainda, a bateria de Luís Patrício e o pandeiro e a cuíca de Guilherme Kastrup, tudo ajuntado ao acordeon (Tatá Sympa), ao violão de náilon (Fernando Nunes), ao violino (Júnior Gaiatto), ao violão e ao banjo (Tuco Marcondes). A mistura confere à pisada riqueza surgida no calor e na fortaleza da cultura musical do Nordeste, com tempero das Gerais, coisa que o ouvinte num instantinho sacará, ainda que jamais tenha posto os pés naquelas terras nem os seus ouvidos nunca tenham sentido a sua plenitude.
        Para melhor avaliar uma cantora a quem nunca ouvimos antes, nada melhor do que ver como ela se sai numa música cuja gravação marcou época. E Patrícia Ahmaral brilha em “Mamãe Coragem” (Caetano e Torquato), com direito à citação de outra canção deles, “Deus Vos Salve Esta Casa Santa” e à levada pop de rico poder de arrebatamento... Caetano adorará ouvir.
        Com arranjo calcado em guitarras, violões e bateria, tendo o baixo a segurar as pontas e os teclados soando detalhes precisos, “De Romance” (Zeca Baleiro) realça a modernidade do cantar de Patrícia, quando a fortaleza volta a dar as caras e vigora a cantora poderosa que salta no escuro sem rede de proteção, voando pelo mundo que abre os braços e a acolhe.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Mário Sève e Cecilia Stanzione


Musicalmente necessário

        Logo que recebi Canción necesaria (Núcleo Contemporâneo), CD que reúne a cantora argentina Cecilia Stanzione e o compositor, arranjador e mago dos sopros Mário Sève, chamou-me atenção o título. Antes mesmo de rodar o disco pela primeira vez, pus-me a matutar sobre o seu significado.
        Que atributos a música deve ter para se fazer necessária? Será que é o momento pelo qual passamos que a torna importante a ponto de marcar uma etapa de nossa vida? Será que é uma harmonia bem trabalhada, um verso que diz o que não conseguimos dizer ou o som de um instrumento que atiçam a nossa emoção? Ou é o timbre de uma voz que se esgueira pelos poros, indo ao nosso âmago, atingindo o que temos de mais reservado, que faz uma canção ser, de fato, necessária?
        Uma música se faz imprescindível quando nos surpreende, quando nos pega de jeito, de uma forma para a qual não estamos preparados. Necessária é a música que se faz trilha sonora de um momento, tornando-se nossa parceira vida afora. Ela é necessária quando dela nos tornamos amantes confidentes, quando só ela nos desperta o choro ou a alegria. Necessária é a canção que nos faz reféns das garras do seu encantamento.
        Canción necesaria traz onze faixas de autoria de Cecilia e Mário: “Una Milonga” tem belíssimo arranjo de Gabriel Geszti, no qual pontificam o sax tenor de Sève, o violão e o baixolão de Rene Rossano, o cello de Lui Coimbra e o piano e o acordeon de Geszti. Com um singelo desenho melódico de seis notas (por vezes trocando a nota final) tocado pelo baixolão, ora só, ora com o piano, e que se repete desde a introdução até o final, vem a voz caliente de Cecilia Stanzione. Poderosamente afinada, criativamente emocionada, enquanto lhe dá ares épicos ela reforça a dor da canção, criando atmosfera lírica e sombria ao mesmo tempo. O diálogo da voz com o acordeon é rico em interpretações várias. O piano e o cello criam um módulo sobre o qual o arranjo flui como um rio tranquilo O sax se une a eles para, com a voz de Stanzione, encerrarem. Meu Deus, eis uma canção necessária.
        O violão toca desenho de simplicidade contagiante. A voz que dá início a “Justo Ahora” é de Ney Matogrosso – a levada da canção tem a cara das músicas em que Ney mais brilha, e ele não nega fogo. A puxada do baixolão carrega junto o sax e o violão. O arranjo de Mário Sève dá ainda mais sabor à música, ela que ganha muito mais peso quando Cecilia se junta a Ney, em preciso dueto com direito a vozes abertas. O intermezzo de sax e acordeon é papa fina. Com vocalises e o acordeon, vão ao final.
        Apenas a voz e o acordeon interpretam “Perfume de Violetas”. A simplicidade do arranjo de Gabriel Geszti permite que a voz de Cecilia ganhe profundidade. Carregando nos erres, ela se desvela em carinhosa e afinada interpretação, e seus agudos soam com a precisão de faca cortando manteiga.
        Canción necesaria é um trabalho que merece toda a atenção, pois se trata de um CD musicalmente necessário.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Coluna (reflexão) do Aquiles


Um pássaro chamado Sucesso

        Ele nasceu cego num ninho no forro de um velho teatro. Rejeitado por pais e que tais, foi abandonado para que definhasse sua solidão até que a morte viesse. A companhia teatral acompanhou o nascimento de sua plumagem e, mesmo sem compreender exatamente o que fazia ali aquele pássaro dia e noite, quase imóvel, no alto do madeirame que sustentava o cenário, aprendeu a conviver com ele. Era com se fizesse parte da montagem do espetáculo. Um ator a mais.
        O pássaro cego cresceu alimentando-se de palavra e música. Ousava voar quando se fazia o silêncio. Como um fantasma, conheceu cada canto do teatro. Deixava-se ficar por longo tempo nos camarins. As gavetas vazias, ah! Quanta magia naquela ausência de objetos. Gavetas prenhes de desejos, repletas de confidências não reveladas. Desejou morar numa delas. Sentindo o calor das luzes que emolduram o espelho, o pássaro cego tentava vislumbrar sua imagem. Em vão.
        Dia de estreia. “Lotação esgotada”, dizia a placa pendurada na bilheteria. A plateia rebuliça. A coxia treme. O pano sobe. As luzes acendem-se. O pano sobe, o espetáculo começa. Cai o pano.  Os aplausos vêm como uma chuva forte, torrencial. Imóvel, o pássaro vibra. O som das palmas entra por sua penugem e soma-se às palavras e músicas que lhe habitam o corpo.
        No proscênio o elenco agradece ao público. Acende-se um refletor em contraluz. Vislumbra-se uma sombra em silhueta. Num gesto teatral, a atriz principal olha para o alto. Todos acompanham seu movimento. Sua voz vem firme: “Pássaro que está prestes a morrer, para que tu não vás pagão eu te batizo. De hoje até tua morte inevitável e prematura, atenderás pelo nome de Sucesso.”
        Finda a temporada, novos teatros acolheriam a trupe que continuaria buscando fazer a emoção e o riso chegarem à plateia. Esta é a vida de quem vive para o teatro. Cada palavra, cada nota musical, é buscada dentro da alma e despejada sobre o espectador na esperança de vê-lo feliz.
        Pássaro espetáculo, Sucesso ama tanto o palco quanto ao ar que o sustenta em voo. Quando a cidade dorme, ele decola para sua missão: inocular o vírus do amor ao teatro nos que sonham. Movido por sua cegueira, ele “sente” quem devaneia. Em suas casas Sucesso pousa. Dá três batidas, como as de Molière, e as janelas abrem-se, como cortina do teatro.
        Iluminado na cegueira, Sucesso anuncia, em versos, os espetáculos que estão em cartaz na cidade. Envolto em panos teatrais, ele faz com que suas palavras invadam o coração daqueles que nas noites seguintes irão ao teatro. Sucesso voa, também, até a janela dos artistas que desafiam o tamanho das salas de espetáculos. Seja astro ou principiante, o pássaro invade seus corações, dando-lhes esperança e força.
        Sucesso volta ao teatro, adormece no camarim e sonha com Goethe, que recita a primeira frase de sua “Carta de Aprendizado”, escrita para o personagem Wilhelm Meister: "Longa é a arte, breve a vida, difícil o juízo, fugaz a ocasião (...)"
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4
PS. Aguenta firme, Doutor Sócrates!

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Antonio Adolfo


Os três mosqueteiros da música brasileira

            Guinga e Chico Buarque são compositores atemporais, suas músicas estão entre as que se perenizarão, cada vez mais, ao longo da história. Graças a seus talentos incontestes, são amados e tidos, pela grande maioria, como modelos musicais; mas são também contestados, há quem os veja como passadistas.
            O pianista e compositor Antonio Adolfo aderiu àqueles que distinguem a importância dos dois. E ao dedicar seu novo disco a uma parte de suas obras, Antonio avaliza seus talentos. Ao homenageá-los lançando Chora Baião (Antonio Adolfo Music), ele lança um novo olhar sobre eles. E para melhor assim ser, lá está sua musicalidade latente nas onze faixas do CD: cinco músicas do Guinga, sendo duas só dele e três em parcerias com Buarque, Celso Viáfora e Aldir Blanc; três do Chico e três do próprio Antonio Adolfo.
            Para realizar o trabalho, foi arregimentado um time de larga experiência e de alta qualidade: Leo Amuedo (guitarra), Jorge Helder (baixo), Rafael Barata (bateria), Marcos Suzano (percussão) e Carol Saboya (vocais), além do irrepreensível piano do dono do pedaço. Ao privilegiar os ritmos que dão título ao CD (o choro e o baião – gêneros nos quais Guinga e Buarque são mestres), ele faz com que o conjunto tenha uma unidade que só faz aguçar o prazer de ouvi-lo.
            A guitarra de Amuedo é movida a concisão: os solos são exemplos do menos que é muito mais. Seuintermezzo em “Dá o Pé, Loro” (Guinga), modelo de como a técnica e a emoção podem e devem andar juntas, eleva-o a uma categoria ímpar em seu ofício.
            O baixo de Jorge Helder traz a segurança de que todo grupo carece para se fazer mais suingado e coeso. Basta ouvir “Morro Dois Irmãos” (Chico Buarque) e sacar a justeza da pegada do cara.
            A percussão de Marcos Suzano, principalmente quando ele está ao pandeiro, impregna de brasilidade até samba de roda composto e tocado por dinamarqueses (com todo o respeito a eles, claro!). Para não dizerem que minto, lá estão ele e o pandeiro, brilhantes, em “Di Menor” (Guinga e Celso Viáfora).
            A bateria de Rafael Barata soa com a precisão dos grandes bateristas. Sua leve levada nos pratos, sem deixar que o som se espalhe em demasia em “Gota D’Água” (Chico Buarque), atesta isso.
Carol Saboya participa cantando “Você, Você” (Guinga e Chico Buarque). Sua voz, de afinação cristalina, está bem avivada pelo piano paterno que a acompanha como se a levasse pela mão num passeio à beira-mar.
            E tem tudo isso e muito mais. Pule de dez, tinha tudo para dar certo um CD no qual Antonio Adolfo se dispôs a juntar seu talento ao de Chico e Guinga. Deu! Discaço! Pois, convenhamos, som contemporâneo é a melodia rica que emoldura a harmonia iluminada por versos e/ou por instrumentos; som moderno é o talento que se revitaliza a cada acorde. Modernos e contemporâneos são Chico, Guinga e Antonio, eles que estarão sempre um passo à frente da modernidade de fancaria, sempre um compasso adiante do modismo de mercado. 

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Delia Fischer


Sagração à música

A pianista, compositora, cantora e arranjadora Delia Fischer lançou Saudações Egberto (Sesc Rio). Um disco em louvor à música de Egberto Gismonti.
Privilegiando composições já conhecidas do compositor, instrumentais ou não, mas que sempre encantaram dadas suas admiráveis qualidades, Delia deu mostras de profunda sensibilidade. Seu piano e sua voz, ungidos pela tranquilidade que vem com a maturidade, acrescentam nuances outras ao repertório de um dos nossos mais instigantes músicos contemporâneos.
Compositor pleno de soluções da mais absoluta imprevisibilidade, bem que Egberto merecia ser revisitado por alguém com a disposição de repensá-lo e de dar à interpretação sua própria linguagem musical, livre de qualquer pré-conceito já cristalizado. E é exatamente isso que Delia traduz em cada uma das treze faixas escolhidas para seu álbum: um jeito só seu de fazer com que as canções de Egberto soem como o ar puro que se revigora após o temporal. Tudo isso, aliado à impecável técnica que Delia tem como pianista, dá a Saudações Egberto tamanha unidade que faz dele um disco de consistente encorpadura.
A contemporaneidade logo dá as caras com “O Sonho” (Gismonti). O arranjo é do “pirulito carijó” (quando algo era muito bom, dizia-se assim lá em Niterói). Moderno, refaz o caminho sonhado por Egberto. O teclado de Sacha Amback desconcerta, tal a sua capacidade de proporcionar ligação entre a percussão (intensa) de Naife Simões, o violino e o cellolino (com pizzicatos primorosos) de Pedro Mibielli, o baixo (seguro) de Pedro Guedes e a voz e o piano de Delia Fischer.
Segue-se “Lôro – Cor de Sol” (Gismonti e Eugenio Dale). Delicado, o violão começa. Delia inicia o canto. Seu piano se junta ao bandolim (Pedro Mibielli). A melodia de Egberto agradece o carinho. O intermezzo de piano tem a bateria em batida leve, mas firme. Ao voltar o canto, a caixa soa uma levada de maracatu. O suingue aumenta. O piano brilha; bandolim e violão também. A harmonia se mostra plena em sua concepção original, acrescida por criativas inserções.
O piano começa a versão instrumental de “Palhaço” (Gismonti e Geraldo Carneiro). A delicadeza está em cada tecla percutida por Delia. O violino e o flugelhorn (Naife Simões) criam sonoridade ímpar. Logo o violino faz belo solo. O piano o acompanha, até puxar para si o improviso. O piano sola. A sonoridade do flugel e do violino volta a protagonizar. O piano retoma, o violino se junta a ele. Volta o som do violino e do flugel... Meu Deus!
E tem ainda Egberto tocando violão de 10 cordas na sua “Saudações”; Paulinho Moska cantando com Delia “Um Outro Olhar – Pêndulo” (Gismonti e Ronaldo Bastos), ela que por sua vez vai de Fender Rhodes em “Dança das Cabeças” (Gismonti) e, só com o seu piano, canta “Auto-Retrato” (Gismonti e Geraldo Carneiro), um monumento à solidão, doce utopia.
Ao homenagear Egberto Gismonti, Delia Fischer consagra a música, faz dela um testemunho de fé no músico brasileiro.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Memórias, última parte


Fim de temporada no Leblon

Hoje eu acordei com a macaca; a cobra vai fumar; eu estou é com a cachorra. Para além de parecer palpite para terno de grupo no jogo do bicho, esse foi o sentimento que me assaltou quando abri os olhos.
Que manhã de sol, meu Deus! Domingo como há muito o Leblon não via. Nuvens batiam em retirada, empurradas por um final de sudoeste frio que a tudo limpa e regenera. Pulei da cama com entusiasmo quase juvenil para quem ainda carregava na memória os fatos lamentáveis do domingo anterior de sol no Leblon, após tanto tempo afastado.
Num arrepio, a cena dantesca de corpos seminus amontoados no calçadão da praia voltou a me assombrar. Nunca poderia imaginar que causaria aquele engavetamento erótico só porque, subitamente, me abaixei para amarrar o cadarço do tênis. Com pavor, revi a cena de arena de circo romano, quando ao apontar as Cagarras, acertei um direto no queixo de um lutador de jiu-jitsu que passava acompanhado do seu dogue alemão. Scud, assim chamavam o meu quase carrasco, o que quase me levou pro solo e me fez mulher, como diria o sábio-erótico Wando.
Abri os olhos disposto a esquecer qualquer desventura que pudesse macular aquele azul suave que descia à terra. Nem mesmo a lembrança incômoda daquele encontrão desajeitado que tive de aplicar num poodle, que quase o jogou no mar e me tirou o bom humor. Fomos.
Vejo que Chico Buarque caminha rapidamente em nossa direção. Pronto, pensei, mais um que vai passar batido... O cumprimento vem acompanhado de um sorriso largo. Olho para minha mulher, sua cara é de incredulidade. Sorrio como quem diz: "Viu só?"
Seguimos felizes. Estava linda a minha mulher iluminada pelo sol. Foi quando uma lufada de vento carregou-lhe o chapéu de palha molenga que a protegia. Disposto a impedir que aquilo pudesse atrapalhar nossa dia, saí desembestado atrás. Fintas, volteios, subidas bruscas, descidas em espiral, ziguezague pra cá, ziguezague pra lá e eu, já tonto, perseguindo o chapéu de palha molenga da minha mulher. Por entre os carros, dentro d’água, no meio do vôlei. Meu Deus! Estava tomando um baile do chapéu de palha da minha mulher molenga, ou melhor, do chapéu molenga da mulher de palha... Xiii!
Mas aqui já é a entrada do Túnel Rebouças? O chapéu entrou. "Táxi, siga aquele chapéu!", ordenei. Já sem fôlego, percebi que àquela altura o helicóptero da Rede Globo mandava imagens da "obstinada perseguição" para todo o Brasil.
As pessoas vaiavam a cada drible que eu levava. Surdo pelo cansaço, eu ainda conseguia ouvir sons distantes: "Esse velho vai morrer" e "Calma, coroa". Linha Vermelha, e o chapéu de palha molenga da minha mulher acabando comigo. Chego à Pavuna: Via Dutra – São Paulo a 426 quilômetros. Agora não tem mais volta, pego essa droga de chapéu nem que seja lá no Paraíso.
Pronto, estou em casa. O chapéu, amarrado ao pé da mesa, parece que ri. "Alô! Nilza, pegue a primeira ponte aérea e volte para casa, tá? Estou te esperando. Um beijo".

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Mais memórias

Um falso paulista na ilha do Leblon

Com o sábado acabando, fui dormir animado. Amanhã será o grande dia. Após um tempão, estou de volta ao Leblon, ilha que tem, à frente, o mar; à esquerda, o canal do Jardim de Alá; à direita, o canal da Rua Visconde de Albuquerque e atrás, a Lagoa Rodrigo de Freitas.
Tentando aparentar modéstia, fui logo prevenindo minha companheira: “Olha, Nilza, não sei se teremos tranquilidade na caminhada que faremos amanhã pelo calçadão. Provavelmente a cada passo serei abordado por velhos conhecidos, alguns poucos e bons amigos que cultivei na época em que eu fui morador do Leblon. Peço-lhe um pouco de paciência e compreensão, afinal, há tempos sem passear pela praia numa manhã de domingo, terei que atender a todos”. Dito isso, apaguei a luz e não dormi. Como dormir imaginando a cena gloriosa que eu já antevia para o dia seguinte?
Acordei com o sol entrando pelo quarto. Levantei-me discretamente pensando: “Teremos um longo dia pela frente”. Mas não custa nada disfarçar o paulistês da minha linguagem. Já pensou entrar num bar, o Bracarense, por exemplo, e sapecar: “Três pastel e um chopps, faz favor, belo”? Não tenho nada a esconder, mas nesse primeiro domingo seria legal não dar muita bandeira.
Paramentado, segui em direção ao calçadão, palco da minha volta triunfal ao convívio com os cariocas do Leblon. Levando Nilza pela mão, respirei fundo e pisei nas pedras portuguesas como quem pisa num tapete de memórias: “Vamos andar até o canal do Jardim de Alá”, sugeri. Trinta metros de caminhada, se tanto, o cadarço do meu tênis novo desamarra. Displicentemente, como convém a um típico morador do Leblon, me abaixo para amarrá-lo. Pra quê, rapaz! Uma senhora que vinha logo atrás de mim quase montou nas minhas costas. O casal atrás da senhora trançou as pernas no pescoço da coroa e assim, sucessivamente, corpos seminus e bronzeados foram se embolando numa cena dantesca e imoral que se estendeu até a Avenida Niemeyer. Não fiquei pra ver, mas ouvi dizer que os bombeiros vieram com um carro pipa para separar os corpos engavetados.
Depois de muito procurar, encontro a Nilza aos prantos. Para acalmá-la, aponto na direção das ilhas Cagarras. Estranho... Não me lembrava de que no meio do calçadão tinha um muro. Que muro coisa nenhuma! Ao esticar o braço, encaixei um direto na orelha amarrotada de tanto esfregar no tatame de um garotão que levava um dogue alemão pela coleira. A galera chegou junto. “Beleza, Scud, bota o paulista pra dormir.” Que apelido singelo, o do cara, não? “Scud”! Um fofo. “Aí, Isshcud, leva o velhote pro chão e finaliza ele.” Me senti numa arena com o povo pedindo meu sangue. O tal do “Scud”, sensível e generoso, ainda meio zonzo, decretou: “Deixa o coroa ir embora, esse cara não dá nem pra saída.” Ô homem bom, esse “Scud”.
Chamei minha companheira e segui caminho. Prudentemente, ela perguntou: “Vamos voltar pra casa?” De jeito nenhum! E os meus conhecidos? Seguimos caminho.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Memórias

O dia em que o passado voltou
Cai uma garoa fina. Minha nau capitânia desliza cuidadosamente rumo a uma terra distante. Velas ao vento em direção ao descobrimento do presente desconhecido. A neblina desce como uma cortina pesada sobre o passado que carrego como um fardo. Não estou nem alegre nem triste, apenas navego. Não estou cansado nem desperto, apenas sigo. Levo na mala as recordações e uns poucos sonhos. Carrego o medo de monstros que nunca vi, mas sei que existem.
Após mais de um quarto de século, as correntes me arrastam para uma ilha que já conheci bem. Lá, nessa pequena ilha, já fui de casa. Hoje, lá, não guardo mais tesouros, apenas memórias. Nessa ilha, hoje não tenho mais amigos, apenas conhecidos. Gente que fala uma língua que quase não entendo, linguagem que expressa o que não sinto mais, e que talvez nunca tenha sentido.
A nau busca o destino. Sinto frio. Um frio na alma, dentro de um corpo que traz marcas de tatuagens de serpentes e corações de mães. Alma que transborda emoções que não se contentam em estar ali, querem voar.
A placa presa no bico de uma impávida gaivota anuncia: “Leblon à esquerda”. Instintivamente giro o leme para onde a seta aponta. Lá é a minha ilha, penso, depois de tanto tempo nela aportarei outra vez. À frente, o mar. À esquerda, o canal do Jardim de Alá. À direita, o canal da Rua Visconde de Albuquerque. Atrás, a lagoa Rodrigo de Freitas. No meio, um dos meus passados. E lá nesse meio um filho, o mais velho.         
Recebo-o na sala do apartamento onde passarei os próximos trinta dias. Ele olha ao redor e, súbito, seus olhos estancam na garrafa de Fernet Branca, minha bebida amarga, forte e favorita desde sempre. “Pai, essa garrafa já estava aqui ou foi você quem trouxe? Eu me lembro desse desenho no rótulo, dessa águia. Puxa vida, pai, já faz tanto tempo, como é que eu ainda me lembro?” O que responder? Não tem resposta não, filho. Você não esqueceu. Só isso. Quando deixei a ilha, filho, você era bem pequeno, passeávamos na calçada, íamos à praia, você e sua camisa do Flamengo, lembra? E o dia em que você corria sozinho pela beira d`água e uma onda o derrubou, lembra? Lá atrás, tentei voar para alcançá-lo. Seu pai não sabe voar, filho. Quando deixei essa ilha, filho, você me acompanhava por botecos que me serviam a cerveja que prenunciava a partida.
Hoje fomos beber chope no seu bar, servido pelo seu garçom. Andamos pelas ruas da sua ilha, filho. As noites do Leblon, filho, agora são suas. Você as conquistou com sua maioridade e sabedoria.
Leve-me por aí, mostre-me o que já conheci, lembre-me do que nunca esqueci, faça-me voltar o tempo de quando nos separamos, diga-me que nada foi em vão. Enquanto minha nau estiver aportada nessa ilha, filho, será como a volta do passado ao seu porto. Serei, por um breve tempo, um ilhéu antigo. Falarei sua língua, sentirei seu tempo passar e me permitirei lembranças boas e más. Serão as lembranças que levarei quando eu voltar a partir.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Carmen Queiroz

Uma cantora definitiva

        Ela nasceu no Paraná. Vivendo na capital paulista desde o início dos anos 1980, iniciou ali sua trajetória de cantora popular. Vinte anos de carreira. Até hoje gravou quatro discos. Há tempos não sentia o que experimentei ao ouvi-la cantar: certeza de estar diante de um talento definitivo, pronto, acabado e retocado... Mas poucos a conhecem. Meu Deus!
        Sua voz é marcante, diferenciada; sua brejeirice assombra; sua delicadeza cativa; suas interpretações têm estilo próprio, único; o vigor do seu cantar é arrebatador; o timbre parece envolto em veludo; afinação indo às notas como a seta vai ao alvo; noção rítmica digna de aplausos entusiasmados... Uma grande cantora.
        Não bastassem tantos predicados, ela canta o que lhe habita a alma, ali entranhada desde tempos idos. Ouvindo canções que se fizeram trilha sonora de seu passado e presente, forjou em canto a emoção que marcaria seu destino. Feito cicatriz, a música misturou-se à sua pele, grudou-se a ela e foi-lhe à corrente sanguínea, bombeando energia a tripas e músculos. Coração aberto à música, sua vida é cantar o que sabe ser seu, por destino e serventia... Mas poucos têm o prazer de escutá-la.
        Ela é Carmen Queiroz, a que gravou Enquanto eu fizer canção (independente), cuja direção musical coube ao violonista Edmilson Capelupi. Num dos mais belos momentos do disco, tocou a ele e seu violão acompanhá-la em “O Meu Amor” (Chico Buarque). O instrumento, parecendo se desdobrar em vários outros, se faz de orquestra de cordas e cria atmosfera de enobrecer a canção.
        Os efeitos e a percussão de Guello, o baixo de Edson Alves, o acordeom de Olívio Filho e o violão de Natan Marques criam o clima perfeito para Carmen interpretar “No Dia Em Que Eu Vim Embora” (Caetano Veloso e Gilberto Gil). O violão faz a introdução. A voz de Carmen soa crispada. O acordeom ameniza a crueza. A percussão bate coco. O baixo dá o chão... Caetano e Gil, se ainda não o fizeram, deveriam ouvi-la, isso lhes produziria enorme prazer.
        Em “Alô... Alô?” (André Filho), o som grave do clarone (Mário Marques) se sobressai junto à flauta (João Poleto) e aos clarinetes (João Francisco e Alexandre Ribeiro). A percussão suinga... E tome polca.
        Cantando “Nenhuma Lágrima” (Sueli Costa), Carmen tem no clarinete (Alexandre Ribeiro) contraponto perfeito. Acrescentando-lhe malemolência, o chorinho se faz mais lamentoso pelo violão de Capelupi e o bandolim de Milton Mori.
        Para homenagear Ângela Maria, Carmen Queiroz se dilacera cantando “Tango Pra Tereza” (Evaldo Gouveia e Jair Amorim). Ao violão, só Edmilson Capelupi. E para que mais?
        Hermínio Bello de Carvalho escreveu versos para “Estrada do Sertão” (João Pernambuco), faixa bônus que conta também, uma vez mais, com apenas o violão de Capelupi. Fortalecida pela sensibilidade e por sua memória musical, a voz de Carmen amplia a emoção do disco... E poucos a conhecem. Meu Deus!

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

Saudade: descanse em paz, Billy Blanco. E quanto ao seu desejo, “Aconteça o que acontecer, não parem nunca de cantar”, deixe com a gente, seguiremos cantando.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A Morte do Pato - Patrocine!

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Ricardo Machado

Memória musical afetiva

        Ricardo Machado lançou A sombra confia ao vento (independente), onde estão músicas que foram destaque no início e meados do século passado. São canções que fazem parte da memória musical afetiva do cantor; músicas que estão para ele como uma foto pendurada na parede da emoção... Assim como também para cada um de nós há um repertório que nos ampara desde sempre.
        Ricardo canta canções que não se imagina um intérprete selecionando para compor o repertório do seu álbum. Assim, soa de forma quase inusitada a regravação de “A Casinha Pequenina” (canção popular tradicional) e “Se Essa Rua Fosse Minha” (modinha tradicional). Mas o que pode parecer num primeiro momento insólito, é, na verdade, uma forma corajosa de reavivar emoções já quase à flor pele. A verdade em forma de sentimentos que não voltam, mas se perpetuam através de melodias e versos longínquos.
        A seleção musical de RM segue apontando caminhos que nem de longe se pode achar fácil de ser trilhado. Misturando Chiquinha Gonzaga (“Menina Faceira”); Waldir Azevedo e Miguel Lima (“Pedacinhos do Céu”) e Carlos Gomes e Francisco Leite de Bittencourt Sampaio (“Quem Sabe?”) com Fredera (“Sábado”); Zé Renato, Juca Filho e Cláudio Nucci (“Toada”) com Cartola (“O Mundo é um Moinho”) e Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (“A Flor e o Espinho”), o álbum adquire o jeitão de um panorama musical popular brasileiro.
        Ricardo Machado é afinado e divide com sabedoria as frases melódicas. Embora, por vezes, abuse do vibrato nas notas mais longas, seu timbre é agradável; sua extensão vocal (embora também se saia bem nos agudos) tem como força maior as notas de escala intermediária. Mas o principal é que suas interpretações têm marca registrada, pois ele canta de mãos dadas com a emoção e convicto da beleza de poder dividir com seus ouvintes o chamamento que lhe sai do peito e ganha contorno de história vivenciada através da música.
        Com singeleza e contemporaneidade, em “Prece ao Vento” (Gilvan Chaves, Alcyr Pires Vermelho e Luiz Câmara Cascudo) Dirceu Leite brilha na flauta e Afonso Marins, no baixo; “Melodia Sentimental” (Villa-Lobos e Dora Vasconcelos) traz bela participação de Maria Clara Valle no cello; em “Casinha Pequenina”, destaque para o sete de Toni 7 cordas e o bandolim de Ricardo Calafate (arranjador e diretor musical); em “O Trenzinho do Caipira” (Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar), o violão, mais o piano acústico de Kiko Horta, dão leveza à levada; em “Serra da Boa Esperança” (Lamartine Babo), Kiko Horta arrasa no acordeom; e em “Castigo” (Dolores Duran)  acompanhamento e o solo da guitarra de Ricardo Calafate nos tocam e emocionam pela brandura da lembrança.
        Ricardo Machado nos convence definitivamente de que, quando a sombra confia no vento, ambos voam juntos, do passado ao futuro, fazendo do presente o momento mágico de reverenciar as músicas que amamos.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

Saudade: Perdemos Mário Chamie. Foi-se o grande poeta, ficam suas palavras.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Coluna do Aquiles, CD em homenagem a Nelson Cavaquinho

A música de um gênio

    Thiago Marques Luis produziu Uma flor para Nelson Cavaquinho – 100 anos (Lua Music), que abre com “Quando Eu Me Chamar Saudade” (Nelson e Guilherme Brito). O cello toca; o violão e Alcione vêm para dar dramaticidade à obra.
    “Palhaço” (Nelson, Oswaldo Martins e Washington). Violão e piano acompanham Leci Brandão. A dor dos versos amplia seu canto.
    “Minha Festa” (Nelson e Guilherme). Emílio Santiago, com belos graves, realça o melodista Nelson Cavaquinho.
    “Folhas Secas” (Nelson e Guilherme). Tânia Maria canta serena. A poesia ganha beleza. Sobre o improviso do trombone e do piano, tudo flui até os vocalizes de Tânia.
    “A Mangueira Me Chama” (Nelson, José Ribeiro e Bernardo de Almeida Soares). Eis Beth Carvalho. Se o samba chama, ela vem. Definitiva.
    “Degraus da Vida” (Nelson, César Brasil e Antônio Braga). Luiz Melodia canta o samba, um dos que mais expõem o lado desventurado do poeta da Mangueira. 
    “Luz Negra” (Nelson e Amâncio Cardoso) está com os graves de Arnaldo Antunes. Nelson é pop. Antunes sabe disso. O arranjo refaz o clássico.
    “Se Você Me Ouvisse” (Nelson e Guilherme) tem Verônica Ferriani cantando o sofrimento em versos. Afinada como poucas, ela soa plena.
    “Rugas” (Nelson, Augusto Garcez e Ari Monteiro). Benito de Paula e seu piano, cheio de quebradas, atenuam a tristeza.
    “A Flor e o Espinho” (Nelson, Guilherme e Alcides Caminha). Ângela Ro Ro canta admiravelmente a obra-prima. O cello aguça a levada bossa nova.
    O samba esquenta com Teresa Cristina cantando “Quero Alegria” (Nelson e Guilherme) e apresenta, digamos, um lado mais solar de Nelson Cavaquinho.
    “Pranto de Poeta” (Nelson e Guilherme), cantado por Fabiana Cozza, acompanhada apenas por violão, é de arrepiar. 
    Cello e bateria recriam a trágica atmosfera de “Luto” (Nelson, Guilherme e Sebastião Nunes). O angustiado pedido do poeta é feito notavelmente pela pouco conhecida Milena. 
    “Ninho Desfeito” (Nelson e Wilson Canegal). O piano e a voz de Cida Moreira são dignos intérpretes de Nelson Cavaquinho. A emoção avassala a dor da despedida.
    Zezé Motta canta “Beija-Flor” (Nelson, Noel Silva e Augusto Thomaz Júnior).
    O cavaco e o ritmo começam. Diogo Nogueira canta “Cuidado Com a Outra” (Nelson e Augusto Thomaz Júnior) e acentua a picardia dos versos.
    Com direito a intermezzo de sax e muita percussão, Graça Braga canta “Fora do Baralho” (Nelson, José Ribeiro e Antônio Gomes Faria).
    “A Vida” (Nelson e Guilherme), na voz de Rita Ribeiro, só com violões, é definitiva demonstração do valor tanto do compositor quanto da cantora.
    Marcos Sacramento arrasa em “Dona Carola” (Nelson, Nourival Bahia e Walto Feitosa. O suingue contagiante o eleva ao patamar dos bambas do samba.
    “Duas Horas da Manhã” (Nelson e Ari Monteiro), por Filipe Catto e sua voz surpreendente, tem bela versão carregada de criatividade.
    Zeca Baleiro fecha o CD com “Juízo Final” (Nelson e Élcio Soares), obra definitiva de Nelson Cavaquinho, gênio nascido há 100 anos. Saudades.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4