segunda-feira, 30 de maio de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Alzira E


Alzira E soma música à palavra

Para a compositora Alzira E (Espíndola) e para o poeta ArrudA, arte é concisão. Assim, tudo é rico quando um mais um é igual a menos de muito mais. Tudo para o menos ser demais de bom da conta. Ademais, tudo é um pouco que torna a canção mais intensa. Impossível haver jeito melhor; improvável mais musicalidade que diga tanto com o menos escolhido por eles para tudo o mais retratar.
Canto que se mistura à palavra. Voz que declama o verso. Poesia que encanta e clama. Dois seres dispostos a ser um só. Cantoria num límpido alvor de manhã espreguiçadeira; olhar de seca-pimenteira, que reduz a sombra da ingazeira à de mera touceira.
Por atuais, adaptei os parágrafos acima, escritos quando tratei do sétimo álbum de Alzira E, gravado em parceria com poeta ArrudA – com o qual criou um belíssimo trabalho –, para iniciar meu comentário de Pedindo a Palavra (independente), seu novo CD.
      Nele a parceria está de volta. Com apenas uma das dez faixas feita com a participação de Jerry Espíndola, todas as outras têm a assinatura dos dois. E juntos criaram um repertório no qual dizem, desdizem e redizem novos conceitos. E seduzem. Tudo o que deles vem vale pelo breve instante em que se revela o tanto da profundidade das sílabas e o tantão do resplendor dos acordes. Montões de música vinda da capacidade de surpreender que sempre teve Alzira, e também ArrudA. Música posta de presente à mesa do ouvinte. Bom proveito.
      Com produção de Du Moreira, a formação instrumental do novo disco é minimalista: além do baixo, dos teclados,  das programações e da guitarra de Du (guitarra que em duas faixas esteve a cargo de Luiz Waack), apenas uma bateria, na qual se revezam Curumim, Kuki Stolarski e Marcelo Effori, e os vocais de Iara Rennó e Luz Marina. Tudo para que restasse intato o sumo da música de Alzira e ArrudA. E bota sumo nisso.
      As melodias de Alzira são criadas de modo já adaptado à sua extensão vocal. Assim, cada nota parece ter nascido pronta para a garganta da intérprete, que sabe da importância da palavra somada à nota musical. Feito grande atriz que canta, o texto brota em Alzira já adquirindo contornos de pura mágica. E é aí, então, mais uma vez, que surgem os versos de intensa contemporaneidade escritos por ArrudA.
      Isso tudo que você me diz/ Sem dizer nada/ É o ponto cego dessa cicatriz/ Costura frágil/ Caminhada/ Isso tudo que você me diz/ Sem dizer nada/ É o silêncio que dói na raiz/ É o silêncio pedindo a palavra. Estes versos, da música que dá título ao CD, nasceram como se fossem gêmeos univitelinos da melodia. Eles são a palavra do poeta traduzindo a expectativa de que a densidade pode ser também lírica, moderna.
Pedindo a Palavra é tudo música, é tudo poesia feita de luz e de sombra; tudo nascido em dias de sol e noites de lua, de verão ou de inverno; vidas carregadas de infinitas sutilezas; tudo aceso; tudo nu, sem vestes nem panos quentes nem leves que interfiram e acobertem o essencial.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Coluna do Aquiles, o CD instrumental do Quinteto Vento em Madeira


E o vento soou na madeira

            A cena da música instrumental brasileira está ainda mais rica com o lançamento do CD Vento em Madeira (Maritaca Discos). Para gravá-lo, Teco Cardoso (sax e flautas) e Léa Freire (flautas) partiram de um trabalho dela, Cartas Brasileiras (2007), produzido por ele. O álbum, um profundo panorama da música instrumental feita em São Paulo nos últimos tempos, contou com mais de sessenta músicos.
            E Léa e Teco se defrontaram, então, com o primeiro desafio: montar um quinteto que teria como meta reproduzir a sonoridade obtida por aqueles 60 músicos do disco anterior – um trabalho libertário e, ao mesmo tempo, rigoroso. Instigados pela real dificuldade da realização do objetivo, em meio a dúvidas, mas estimulados por elas, nasceu o Quinteto Vento em Madeira, integrado por Léa e Teco, mais o baterista Edu Ribeiro, o pianista Tiago Costa e o contrabaixista Fernando Denarco. E como se não bastasse, há um sexto “instrumento”, convidado muito especial em quatro das nove faixas, a voz de Monica Salmaso.
            Músicos de altíssimo gabarito, dispostos a recriar um amplo retrospecto da música instrumental contemporânea, os cinco se debruçaram sobre o repertório: oito temas de autoria de Léa, Teco, Edu e Tiago, e “Luz Negra”, uma das mais magistrais de Nelson Cavaquinho, parceria com Amâncio Cardoso.
            Os temas instrumentais, nos quais prevalece um amplo espectro de ritmos, foram orquestrados de modo a fazer deles uma mostra do que a versatilidade e a competência dos músicos podem realizar.
            Segundo desafio: um ano de ensaios. Tempo para que arranjos e composições fossem burilados, até que estivessem prontos para serem tocados sem o auxílio de partituras. A interpretação, assim, deu-se de maneira solta, contundente. “Copenhague” exemplifica o quanto isso é verdade: um tema lento, com momentos de dissonâncias, começa com as flautas baixo e sol dando o toque de taciturnidade pedido pela linda melodia. Logo elas dão vez ao piano. O baixo e a bateria tocam delicados. Flautas e piano acentuam a tristeza, levando-a a um ponto de raro esplendor.
             Cantada por Monica Salmaso, “Luz Negra” é o encanto em versos. A harmonia deixa de lado a original, buscando um jeito novo de entender o gênio de Nelson Cavaquinho, e o início do arranjo é dedicado a improvisos – em que o sax brilha. Para dar início ao canto, o piano sola e logo o sax vem tocar a melodia, já agora com o apoio do baixo e da bateria. A flauta baixo soa lindamente. E surge Monica Salmaso... Deus do céu! Nelson aplaudiria.
            O resultado é um trabalho da mais alta categoria musical. As performances são uma mostra do quanto valeram as dezenas de ensaios – cada instrumentista tirou o melhor de seu instrumento. Mesmo quando a composição era de difícil execução, tal intimidade permitia que ela soasse de maneira simples. Ainda que a sofisticação harmônica pudesse levar a crer em algum grau de dificuldade de compreensão, o jeito como o quinteto toca a torna acessível.  

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Coluna do Aquiles, o CD do violonista Daniel Murray

Um virtuoso tocando Tom Jobim
            Qual instrumentista é mais virtuoso? É o que tira sons limpos, com os dedos revelando-se ágeis e precisos? O que tem mais pegada, fazendo-nos mal respirar, tamanha a excitação provocada por sua apaixonada interpretação? Seria mais virtuoso o que se dedica a criar delicadas belezas a partir de uma leitura especial da obra com a qual se propôs a nos tocar o coração? Ou seria mais talentoso o músico que homenageia os autores, respeitando suas concepções originais?
            Se o talento andar de mãos dadas com a sensibilidade, se o instrumento revelar sonoridade e limpeza e o instrumentista possuir boa técnica, se nos emocionar tanto quando sua pegada é suave quando ela é vigorosa, se sua alma musical nos surpreender, dando seu melhor à harmonia e à interpretação, nos fazendo crer que o que toca é algo mais próximo da plenitude, mas sem excessos banais... São todos igualmente virtuosos. Mas há que perceber e valorizar cada uma dessas qualidades, pois uma não desmerece a outra.
            Vamos ao CD Tom Jobim para violão – Daniel Murray (Delira Música). Produzido por Paulo Bellinati, é o segundo álbum do violonista e arranjador que agora mergulha no complexo, profundo e instigante oceano musical tomjobiniano.
            Parte de uma seleção impecável de catorze temas, nos quais Tom dividiu a criação com diversos parceiros. Bem... Aqui há o senão do trabalho: em nenhum lugar, nem na capa, nem na contracapa, muito menos no release, estão nomeados os que dividiram com Tom Jobim a responsabilidade de criar as canções que desde sempre fazem a música brasileira ser ainda mais rica e diversificada. Voltando... Na seleção musical se destacam algumas das mais belas parcerias do maestro soberano com Vinícius de Moraes: “Por Toda Minha Vida”, Chora Coração”, “Estrada Branca”, “A Felicidade” e “Luiza”.
            Há também músicas feitas com Chico Buarque: “Imagina” e “Eu Te Amo”. E seis temas apenas de Tom Jobim: “Antigua”, “Tema para Ana”, “Chanson Pour Michelle”, “Garoto”, “Gabriela” e “Bate-Boca” (choro cujo título foi sugerido por Chico Buarque), bem como uma com Aloysio de Oliveira, “Eu Preciso de Você”.
            Para tocá-las, Daniel buscou a concisão e a delicadeza. Suas interpretações abrangem a totalidade das intenções primeiras do autor. Assim, Tom está presente, vivo e desnudado apenas por um violão soberbamente tocado.
            Os arranjos expressam todas as ideias instrumentais concebidas pelo talento tomjobiniano. O violão não compete com o conteúdo que expressa; vale-se dele para, pleno de criatividade, ser ainda mais instigante. O ambiente sonoro é de extrema paz. Cada faixa escutada agrega um prazer maior ao ato de se deixar levar por algo tão vibrante e terno.
            Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim e Daniel Murray se somam para multiplicar por dois o que parecia incomensurável. Ao dividirem seus talentos, autor e intérprete se acrescentam e agregam fortuna ao que parecia nem precisar de tanto mais para ser ainda muito melhor.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Coluna do Aquiles MPB4 - Minha filha

Minha filha,

            Seu avô, meu pai, foi perseguido pelos militares que tomaram o poder em 31 de março de 1964. Ele era um homem inteligente, honesto e trabalhador. Foi preso, perseguido e logo ficou muito doente. Deixou-nos deixou cedo demais. Mas veja como são as coisas: hoje ele é nome de colégio, CIEP Prof. Geraldo Reis, em Niterói, no Rio de Janeiro.
            Fui para São Paulo em 1965. Com 17 anos, era a primeira vez que eu saía de Niterói sem meus pais. Eu e meus três companheiros fomos tentar o sonho de cantar no Fino da Bossa, programa de Elis Regina na TV Record. Dias depois de nossa chegada, conhecemos um principiante: Chico Buarque. Conhecemos também as meninas do Quarteto em Cy e com elas ensaiamos um pot-pourri de sambas antigos e, na primeira tentativa de aparecer no Fino da Bossa, o apresentamos a um dos diretores do programa, Manoel Carlos, hoje autor de novelas para a Globo. Conseguimos... Nossas férias estavam só começando.
           As férias chegaram ao fim, tínhamos que voltar para casa. Mas o empresário (sim, já havia um cuidando da nossa “agenda”) disse que tínhamos que decidir se queríamos ser profissionais de verdade ou se voltaríamos para Niterói. Foi difícil a decisão, filha... Ficamos um ano em São Paulo.
           Em 1966, tivemos o nosso “batismo” num festival da TV Record. Cantamos “Canção de Não Cantar”, de Sérgio Bittencourt (filho do grande Jacó do Bandolim). Ficamos em quarto lugar e fomos contratados pela Record. Um ano depois defendemos “Gabriela”, frevo de Chico Maranhão, um jovem estudante da Universidade de São Paulo (USP), que ficou em sexto lugar, e “Roda Viva”, que cantamos junto com Chico Buarque e ficou em quarto. “Roda Viva”, inclusive, é hoje o tema principal da nova novela de Thiago Santiago no SBT, Amor e Revolução.
           Aos festivais da Record somaram-se o Festival Internacional da Canção, da Globo, e o Festival Universitário da Canção (foi neste, em 1970, que cantamos “Amigo É Pra Essas Coisas”, de Sílvio Silva Junior e Aldir Blanc, que ficou em segundo lugar).
           Olha, filha, apesar da ditadura militar (víamos amigos desaparecerem e nunca mais voltarem, outros desapareciam e voltavam marcados pela violência brutal da tortura), apenas por medo ou descuido fingíamos não ser felizes.
           Àquela época a censura atingia indiscriminadamente autores e público, já que só se via, ouvia e lia o que os donos do poder julgavam aceitáveis. Mesmo sob o jugo dela, que mutilava a criação, vivemos no limite do desafio de enfrentá-la. O MPB4, seu avô e tantos outros melhores do que nós éramos considerados “subversivos”. Isso, antes de nos ameaçar, honrava-nos.
           Filha, nunca desista de tentar modificar o que lhe parecer errado. Junte-se a outros e seja forte. Deixe que as ideias briguem, nunca as pessoas. Não se acanhe de chorar. Use a palavra. Busque o novo sem temer o velho. Repudie a arrogância e o preconceito. Não contenha uma exclamação de felicidade ante o belo. Seja feliz, Leticia!
           Um beijo carinhoso.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4