segunda-feira, 27 de junho de 2011

Coluna do Aquiles, o CD do cantor Fábio Jorge

O chansonnier do século 21

        A voz é doce, encorpada; o timbre, grave, agradável; a afinação, acurada; as divisões rítmicas, cuidadosas; a pronúncia, impecável; a instrumentação, concisa; e, no repertório, canções francesas (a maioria), americanas, italianas e brasileiras – estas últimas, vertidas para o francês. Eis um breve resumo das potencialidades de Fábio Jorge e de seu disco Chanson Française 2 (Lua Music).
        Paulistano, filho de pai brasileiro e mãe francesa, o chansonnier do século 21 se desvelou para produzir um trabalho que lança aragem fresca sobre a música francesa, aquela que, de tempos em tempos, recupera seu lugar de destaque no cenário musical internacional.
Produzido por Thiago Marques Luiz, o CD traça um sábio caminho que transforma em francesas músicas de Gonzaguinha, “Jeu de Blâme” (“Grito de Alerta”); Dolores Duran e José Ribamar, “Tendrement”, (“Ternura Antiga”), estas duas com versões de Fábio Jorge; Edu Lobo e Torquato Neto, “Adieu” (“Adeus”), versão de Cauby Peixoto; Matteo Chiosso e Giancarlo Del Re, “Parole, Parole”, versão de Michaele; Burt Bacharach, “Les Yeux de L’Amour” ("The Look of Love”), versão de Gérard Sire; Arnold Goland e Jack Gold, “Comment Te Dire Adieu”, versão de Serge Gainsbourg.
        E faz delas irmãs consanguineas das de Charles Aznavour e G. Garvarentz, “Les Plaisirs Démodés”; J. Dréjac e Michel Legrand, “L’Été 42”; Alain Barriére, “Ma Vie”; Michel Legrand e Francis Lai, “Je N’Attendais Que Toi”; Françoise Hardy e Tuca, “La Question”; Michel Vaucaire e Charles Dumont, “Non, Je Ne Regrette Rien”.
        “Ma Vie” inicia o disco. Com apenas o piano de Gustavo Sarzi a acompanhar Fábio Jorge, e arranjo de Thiago Marques, o clássico ganha dramaticidade.
        Piano e bongô (Nahame Casseb) começam “Tendrement”. Inspirado por Dolores Duran, Fábio interpreta e comove. O violão de Ronaldo Rayol (também arranjador) toca belo intermezzo. É quando Cida Moreira chega para participar, (en)cantando a letra em português.
        Tuca, cantora paulistana que, antes de se mudar para Paris, fez sucesso no início dos anos 1960, escreveu os versos de “La Question”. O violão de Rovilson, o baixo acústico de Eric Budney e o piano de Daniel Bondaczuk (arranjador) dão suporte à voz de Fábio para que ela seja terna, como pede a melodia de Françoise Hardy.
        É hora de Cauby Peixoto cantar com Fábio Jorge sua versão para “Pra Dizer Adeus”. Meu Deus! O violão de Ronaldo Rayol, também arranjador, remata a entrada. Envolto em suave reverber, FJ começa o canto. E vem a segunda parte; com ela, o mestre e seu discípulo se emaranham na teia da emoção.
        O piano toca. Fábio canta. O acordeom de Irene Mutanen surge. O baixo acústico dá ardor ao arranjo de Hanilton Messias. Logo, Silvia Maria acrescenta luz a “Je N’Attendais Que Toi”.
        O piano de João Carlos Assis Brasil toca “L’Éte 42”, fecha o CD e resume o espírito buscado com sucesso por Fábio Jorge: com sua bonita voz, enaltecer a música francesa, por tantas vezes incompreendida.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Coluna do Aquiles, a ópera popular de Chico Maranhão

O brilho da nação maranhense

        Francisco Fuzzetti de Viveiros Filho nasceu em São Luís do Maranhão. Ao completar dezoito anos, desceu para São Paulo. Cursou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Influenciado pelo ambiente musical da época, fez-se compositor e violonista. Àquela altura, conhecido apenas como Maranhão, tocou violão na premiada montagem de Vida e Morte Severina (1968), de João Cabral de Melo Neto, cujos versos Chico Buarque musicou.
        Participou do terceiro Festival de Popular Brasileira (1967) da TV Record, onde conquistou o sexto lugar com o frevo “Gabriela”. Para avaliar o valor do feito, lembremo-nos de que nesse festival Edu Lobo e Capinan conquistaram o primeiro lugar com “Ponteio”, Gilberto Gil ficou em segundo com “Domingo no Parque", Chico Buarque, com “Roda Viva”, ficou em terceiro e Caetano Veloso (“Alegria, Alegria”) chegou em quarto.
        O tempo passou e Maranhão voltou para casa. Virou Chico Maranhão e tratou de fazer valer seu amor por sua terra, nomeando-a Nação do Boi. Fez-se um estudioso cultural e aprofundou seu olhar amoroso sobre a cidade de São Luís, o que o levou a escrever o livro Urbanidade do sobrado, um estudo sobre a arquitetura dos sobrados da antiga São Luís.
        Compositor instintivo, mas com rara sensibilidade, Chico Maranhão, em seu retorno, logo se dedicou a um disco de fôlego: Ópera Boi – O sonho de Catirina, uma ópera popular em um ato.
        No CD (independente, com apoios diversos), Chico Maranhão disseca o espírito do bumba-meu-boi maranhense; demonstra suas variantes; espicaça suas intenções; chama atenção para a força do boi no imaginário da gente maranhense. E isso não é pouca coisa, não! Trata-se, isso sim, de uma obra de referência para os que acreditam que é através da cultura e suas manifestações populares que o Brasil assume sua verdadeira cara como nação.
        Ópera Boi – O sonho de Catirina principia com um tambor de crioula. A marcação rítmica é tão forte como potente é a voz feminina que entoa versos ricos em imagens. Ao final, surgem cantos de passarinhos, em satisfeita harmonia com as cordas que remetem a um canto litúrgico. Vem um polichinelo para alegremente anunciar a chegada do circo. Os lavradores Catirina e Francisco conversam.
        Cinco cantatas têm ritmo de matracas, pandeirões e chocalhos, em comunhão com cordas, violão, teclado, sopros e flauta, resultando em saborosa mescla de sons múltiplos. Ao misturar a consistência da arte popular com a fortuna da música erudita, a simplicidade musical do trabalho cativa.
        E vêm surgindo em cena o amo e senhor, os Rajados, os “Tapúios” e os Cazumbás. É o povo cantando, dançando o passo e a sua dor ancestral.
        Os solistas, o coro, o batuque e o cordão tornam vivo o boi. E nele, São Luís e o Maranhão se agigantam e se tornam ainda mais fortes e pertencentes àquela uma gente que os ama incondicionalmente.
        Trabalho de um verdadeiro amador, a ópera popular de Chico Maranhão tem na emoção e na sinceridade a bela tônica.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Carlos Navas cantando Custódio Mesquita

Voz e piano homenageiam um grande compositor

        Custódio Mesquita (1910-1945) bem que merecia muito mais do que as poucas, embora sinceras e amorosas, homenagens prestadas quando do seu centenário de nascimento. Entretanto, dentre elas, um disco se destacou por conter treze das mais belas músicas do grande pianista e compositor: Junte tudo que é seu... Canções de Custódio Mesquita em voz e piano (independente). Um projeto de Carlos Navas, cantor que dá sua voz às canções de Custódio Mesquita, prodigioso criador de melodias de rara delicadeza.
        Nesse que é o seu nono disco, o intérprete reforça sua característica de cantar canções românticas como um visionário prestes a morrer de tanto amar, de cantar como se sua voz acalentasse os versos, embalando-os em seus braços, trazendo para junto de si a melodia e dela se vestindo a rigor.
        Com um jeito malicioso de cantar, ele até tenta (em vão, diga-se) despistar o seu verdadeiro talento. Mesmo assim, por vezes, ainda podemos ser levados à falsa impressão de que sua voz é o que ela não é: ingênua. Muito embora demonstre não fazer a menor força para que tamanha inverdade salte à vista, sua voz embute o prazer do canto, insofismável maneira de comprovar que estamos, isso sim, diante de um grande intérprete. 
        Para dar asas à sua ideia, Carlos Navas entregou o piano aos dedos de Gustavo Sarzi. Ao piano juntou-se a voz, e juntos desaguaram em repertório exemplar: como Custódio Mesquita com Noel Rosa, “Prazer em Conhecê-lo”; com Mário Lago, “Enquanto Houver Saudade”, “Mentirosa” e “Nada Além” (esta tendo a calorosa participação de Rosa Marya Collin); com Evaldo Rui, dentre outras, “Como os Rios Que Correm Pro Mar” e “Nossa Comédia”, a qual Alzira E emprestou sua voz inusual; e Custódio com Orestes Barbosa, “Flauta, Violão e Cavaquinho”, em bela versão apenas com piano.
        Ah, o piano e seu mosaico recortado, sobre ele bailam dedos travessos. Ora juntos, ora solitários, eles se movimentam em ritual pagão e se valem de feitiço próprio para expandir o diálogo entre o real e o imaginário, criando sons martelados em preto e branco.
        Ah, a voz, poderoso instrumento capaz de criar momentos únicos, ela se achega, como quem não quer nada, e logo nos domina, nos levando ao êxtase, ao místico mundo das imagens. Voz e piano, dois a exaltar o incompreensível e a dar cara ao imponderável.
        Profana, a voz atrai o piano, em cujo leito branco os dedos se deitam em comunhão de carnes, ossos e tendões, em intenso movimento de voluptuosa sensualidade. A voz os vê entrelaçados, superpostos, e neles despeja sua energia. E ao sentir que se afastam e respiram, para logo voltar a se roçar, pele com pele, a voz canta a eles por linhas tortas.
        Ah, piano, intenso instrumento, quantos arrepios sonoros já germinaste? Ah, voz, mágico encorajamento, quanta inquietude já geraste? Ah, meu Deus, que intensa força é essa que resulta da volúpia da voz e de dez dedos deslizando sobre os dentes de marfim de um piano?

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Coluna do Aquiles, o CD instrumental do Quatro a Zero

Goleada instrumental

        Após Choro Elétrico (2005) e Porta Aberta (2008), o Quatro a Zero lança Alegria (com apoio do ProAC, do estado de São Paulo). Integrado por Daniel Muller (piano e acordeom), Danilo Penteado (baixo elétrico e acústico), Eduardo Lobo (guitarra e violão) e Lucas Casacio (bateria), o grupo tem uma visão muito particular dos gêneros musicais tidos e havidos como sendo “de antigamente”.
        Tanto nas composições quanto nos arranjos, seus instrumentos soam impregnados de uma concepção que se vale da tradição para ousar novas formas de bem interpretá-la, com riqueza harmônica, suingue e melodias contagiantes. O que resulta numa audição de raro prazer. Fato que a presença para lá de especial do bandolinista Joel Nascimento, do saxofonista Nailor Proveta e do baterista e percussionista Oscar Bolão só faz acentuar.
        Na abertura, Nailor Proveta e seu saxofone soprano dão vida a “Papo de Cozinha” (Proveta). A pisada é contagiante. O acordeom dá o ar de sua graça. A bateria leva na caixa. O baixo segura as pontas. O acordeom encabeça a melodia. O sax volta e “conversa” com o acordeom e o contrabaixo. O bandolim pede vez... todos dão, claro! O sax retoma. A bateria tem alguns compassos para solar. O maxixe segue e vai ao fim.
        O piano começa, a guitarra assume e conduz “De Peroba-Rosa” (Daniel Muller). O piano e o baixo chegam junto. A guitarra sola enquanto bateria e baixo apoiam. Depois da guitarra, o piano puxa. O chorinho volta firme nas cordas da guitarra. Dá para sentir o cheiro do café que acabou de ser passado e está sobre o fogão, aguardando que o papo arrefeça para ser tomado. E a guitarra e o piano trazem o papo para si – todos param para ouvi-los dizer o que sentem. Empolgados, findam o papo.
        (Na verdade, o repertório é tocado como se os músicos, depois de um tempo sem se ver, estivessem em torno de um fogão a lenha, cada um com seu instrumento, loucos para prosear e mostrar um ao outro o que de melhor sabem fazer).
        A caixa da bateria, agora com Oscar Bolão, começa. O piano e o baixo vão junto. O bandolim sente a pressão e se junta aos bons. Recomeça o papo. O bandolim, nas mãos de Joel Nascimento, dedilha com as cordas presas, o que aumenta o suingue e segue imprimindo brasilidade à deliciosa “Dança de Urso” (Candinho). 
        Em “Bacalhau ou Caipirinha?” (Eduardo Lobo), a guitarra e o piano abrem. Logo a guitarra assume a melodia. O piano contribui para a moderna sonoridade. E os dois demonstram que não há chance de algum instrumento não ser adequado à tradição musical. Ora, a guitarra está ali para dirimir qualquer dúvida que ainda possa existir. O piano e a guitarra abdicam do ritmo e proseiam, mas logo deixam que a bateria e o baixo os reconduza ao choro; aí tudo volta a balançar.
        Suíte Retratos, de Radamés Gnatalli, é a comprovação da maturidade musical dos meninos do Quatro a Zero. Diante de obras definitivas, seus talentos emergem, pródigos. Ouvi-los aumenta a goleada musical. Show de bola.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4