segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Rafael Altério


Milagreiros, graças a Deus

        “Elegbá veio, sou eu, elegbá, laroê/ Com Zumbi que veio de elegbá/ Pode tu, Zumbi Bará, pode ir/ Pode ir lá/ Que teu povo veio chamar”, versos de “Zumbi Bará” (Rafael Altério e Paulo César Pinheiro). Assim canta Rafael Altério, abrindo seu CD Santo de Casa (independente, com patrocínios). Aceitando o chamamento, levou consigo sua brasilidade e seus santos de casa: amigos de fé, músicos de boa cepa, todos integrados no papel de solidificar a mistura da sonoridade harmônica com o fervor rítmico, resultando em música de brasileira qualidade.
        Para tanto, contribuem os arranjos – a maioria de Rafael Altério (a direção artística é dele e de Celso Viáfora) – e as percussões, principalmente quando estão nas mãos de Kleber Benigno (Paturi), Márcio Jardim e Nazaco Gomes, os meninos paraenses do Trio Manari. Aos tambores amazônicos se juntam as teclas dos pianos (Paulo Calazans, Breno Ruiz e Rafael Altério), o acordeom (Breno Ruiz), a bateria (Gabriel Altério), a flauta (Teco Cardoso), as cordas dos violões (Luiz Ribeiro, Dani Black, Pedro Altério, Dani Altman e Rafael Altério), o baixo (Marcelo Mariano), a guitarra (Léo Amuedo e Dani Black) e o cello (Mariza Silveira). Toda essa gama infinita de sons vigorosos dá a Rafael o direito de impor com dignidade o seu vozeirão – sua voz tem o seu tamanho. Cercado de amigos, desde os instrumentistas até o coro feminino, ele não poderia deixar de também trazer para perto de si os parceiros letristas, Paulo César Pinheiro, Celso Viáfora, Joãozinho Gomes, Breno Ruiz e Rita (esposa) e Pedro Altério (filho). Todos santos da casa dos Altério, milagreiros, graças a Deus.
        Ao ouvir as onze faixas do CD, entende-se perfeitamente o que Rafael quer com a música e o que ele ambiciona alcançar com ela: para Altério, música é missão cultural. Sabedor de tamanha exigência para consigo próprio e para com sua obra, trata de criá-la como quem concebe um filho.
        A pegada da pele dos tambores está presente em quase todas as faixas. Com o balanço comendo solto, impossível aquietar o esqueleto. E segue o som, até que chega um momento de calmaria: André Mehmari tocando ora piano acústico, ora acordeom, e Rafael cantando, dele e Rita, “Flor de Rio”.
        Logo a seguir, “Quando o Galo Cantar”, também dos dois. Os tambores do Manari e a flauta pontuam o início do canto. O pandeiro (Douglas Alonso) tem vez e segue até que o violão de aço, a bateria e o baixo, este com uma puxada de intensa pujança, juntem seu som à voz. A caixa da bateria conduz agora. O coro feminino reforça. O violão e a flauta fazem breve intermezzo. A melodia volta com Rafael e o coro... Meu Deus!       
        É a hora do sincretismo musical/religioso/afetuoso de Altério se despedir. E ele canta a letra de Joãozinho Gomes para “Camarada de Ogã”: “Vou pela manhã, tô indo agora/ O dia raiou fora de hora/ Vai junto de mim/ São Sebastião crivado/ São Bartolomeu irá ao meu lado”.
        A casa dos santos de Rafael Altério está aberta.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Luiz Millan - Tocando nas nuvens


Tocando nas nuvens

        Entre Nuvens (independente) é o primeiro disco de Luiz Millan. Bom compositor, letrista inspirado, o trabalho é um belo cartão de visita. A partir dele, sua passagem pela grande porta da música brasileira de qualidade se mostra real.
        Michel Freidenson (arranjador e diretor musical) deu ao seu teclado e às flautas de Léa Freire (com direito a saboroso fraseado da flauta baixo) a responsabilidade de começar “E o Palhaço Chorou” (Mozar Terra e Luiz Millan), música que abre os trabalhos. Junto com eles vão os violinos de Luiz Amato e Esdras Rodrigues, a viola de Emerson De Biaggi e o violoncelo de Adriana Holtz. O som resultante cria a beleza que deságua no doce cantar de Ana Lee. O chorinho de boa cepa segue brejeiro. O teclado toca notas de suave requinte. A cortina do naipe de cordas deságua na amplidão da boa música. Afinada que só ela, Ana Lee dá à melodia o valor que enriquece os versos de Millan e a harmonia de Mozar.
        “A minha máquina escreve letras sem pudor/ E frases perdidas entre a metafísica e o amor”, versos de “Montparnasse” (Plínio Cutait e Luiz Millan), traduzem o objetivo poético de Millan. Para cantá-los, Consiglia Latorre... Deus do céu! O que é a voz dela? Agudos límpidos, emoção à flor da pele, respiração impecável... O acordeom (Toninho Ferragucci) e o piano iniciam a canção quase frágil, tamanha é sua delicadeza. O acordeom se destaca. O violão toca a harmonia, porém se faz protagonista num breve dedilhar de notas uníssonas com o canto. O intermezzo de acordeom e violão, com o piano a fazer-lhes cama, é especial.
        Ana Lee inicia “Mito” (Luiz Millan e Ivan Miziara), uma das quatro músicas do CD para as quais Luiz Millan criou a melodia, não os versos. Mais uma vez, o arranjo de Freidenson usou cordas e teclado, além de baixo (Sylvinho Mazzucca), cuja pegada reforça a levada sem tirar-lhe a suavidade, e bateria (Alex Duarte), que se vale dos pratos para acentuar a força dos versos, sem, no entanto, encobri-los. Tudo isso encarrega-se de vestir uma das mais belas canções do CD. Canção que parece feita para a voz de Ana Lee, pois, ao cantá-la, transforma-a numa ode à paixão. O intermezzo de teclado e cordas é belo em sua fortaleza. Ao retomar o canto, Ana Lee delicia-se com palavras: “Tens esta partitura/ Nas vértebras finas/ Tua música pura/ Rima íntima”.
        “Outono” (Luiz Millan e Michel Freidenson), um dos dois temas instrumentais do CD, tem no sax soprano de Teco Cardoso o ponto de partida. O teclado o acompanha. As cordas também. Mais um belo arranjo de Michel. O acordeom de Ferragucci chega para aumentar a temperatura e o prazer de fazer da música fonte de deleite estético.
        Instrumentistas, cantoras, compositores, arranjadores, um grupo coeso que só ratifica a excelência musical, instrumental, vocal e poética de um trabalho que abre a possibilidade de mais um compositor se juntar ao time dos que fazem da música brasileira a mais rica e diversificada do mundo: Luiz Millan.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Sérgio Sampaio


O bloco volta à rua

        O LP Sinceramente, de Sérgio Sampaio, lançado de forma independente em 1973, está de volta à praça. Se por acaso você, leitor, acha que nunca ouviu falar de Sérgio Sampaio, tente cantarolar este refrão: “Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender”. Lembrou? Pois é... Sérgio Sampaio arrasou nesse baita sucesso.
        Logo após o estouro nas vendas do compacto que continha “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, apresentada no VII Festival Internacional da Canção da TV Globo (1972), e não conseguindo igual êxito comercial nos três LPs que vieram a seguir, Sampaio foi tachado pela indústria fonográfica de “artista difícil” e pela mídia de “autor maldito”.
        Seu primeiro LP (1973) tem como título o mega hit Eu quero é botar meu bloco na rua. Em 1976 veio o segundo: Tem que acontecer. E, relançado agora em CD, Sinceramente (1982) foi seu terceiro e último long play solo. Com onze músicas suas, sendo uma (“Cabra Cega”) em parceria com Sérgio Natureza, Sampaio abriu o peito e demonstrou o quanto sua alma estava dilacerada. Os tempos andavam bicudos...
        Contando com a participação talentosa de Renato Piau (pianista e parceiro de Sérgio Sampaio desde sempre), Zezinho Moura (piano elétrico), Ricardo Feijão (baixo), Charles Chalegre (bateria), Oberdam Magalhães (sax e flauta), Luciano (arp strings), Serginho Boré (percussão) e com o violão acústico de Sérgio Sampaio, Sinceramente (Saravá Discos) se revela um CD bem remasterizado, cujo som tem brilho e profundidade.
        Além de samba, boleros e canções, o álbum tem baladas que despretensiosamente namoram o brega, sem, contudo, permitir que se lhes pespeguem tal adjetivo. Pois elas lembram, na verdade, a pujança transformadora das baladas que Raulzito tão bem difundiu e Sérgio adotou.
         “Essa Tal de Mentira” é uma canção na qual a boa voz de Sampaio é embalada pelo som dos violões (um improvisa, enquanto o outro harmoniza) e do baixo. Os versos ecoam seus sentimentos: “Com a alma partida/ Dando com o corpo nas grades da cela da vida/ Como num mar de paixão/ Náufrago que estende a mão/ Agarro o meu violão/ E canto uma canção”.
        Luiz Melodia divide o canto com Sérgio no samba “Doce Melodia”, homenagem de Sampaio a Luiz Melodia. Divertidos e cheios de ginga, os dois se esbaldam e esbanjam malandragem.
        O violão começa “Nem Assim”. A voz de Sérgio vem firme, entoando as dores da separação, mas tudo com muito bom humor.
        Em “Sinceramente”, a música que dá título ao disco, os violões acompanham a voz que vai aos agudos para cantar notas da melodia. Os versos são um louvor à independência, no sentido mais amplo do termo: “Não há nada mais tranquilo/ Do que ser o que se sente/ E poder amar, perder, chorar/ Depois ganhar/ Assim sinceramente”.
        Vítima de pancreatite, Sérgio Sampaio nos deixou em 15 de maio de 1994. Mais um dos grandes compositores que a música brasileira perdeu para o alcoolismo. Pena.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4