segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Patrícia Ahmaral


O poder de uma cantora

        Depois de lançar dois discos, a cantora e compositora mineira Patrícia Ahmaral volta à cena comSuperpoder (gravado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, com o patrocínio da Vivo).
        Produzido pelo contrabaixista Fernando Nunes, também arranjador das treze músicas do álbum (em duas delas dividindo o trabalho com outros três arranjadores), contando com participações especiais de Lucinha Turnbull (em “Trilha de Luz”, da própria Lucinha) e de Chico César (em “Sorry, Baby”, uma das três músicas de Patrícia presentes no disco), tendo no repertório desde Alceu Valença, Lula Queiroga (autor da faixa-título) e Belchior até Zeca Baleiro, Caetano Veloso e Torquato Neto, passando por Totonho, Vander Lee (presente com duas músicas – uma delas, “Revoada”, em parceria com Ahmaral), Paulo César Barros, Getúlio Cortes, Carlos Tê e Hélder Gonçalves, Superpoder justifica o título: Patrícia é poderosa.
        Seu poder maior advém da força do seu cantar. Levando as interpretações às últimas conseqüências, sem medo de se fazer intensa ou demasiada, as palavras lhe saem como petardos que miram o entusiasmo do ouvinte, trazendo-o pelo ouvido para a roda de fogo. A chama de seu canto acende o prazer de vê-la afinada, sem deslizes que pudessem comprometer o seu desempenho.
        Sua poética é forte, como mostram os versos da sua “Do Querer” e de “Sorry, Baby”, uma parceria com Chico César – que com ela divide o canto: Pelas mazelas/ Pelo medo/ Pelo soco na cara/ Pelo tapa na veia/ A navalha/ Pela noite escura/ Pela bala/ Pela infância bandida/ Pela fumaça (...)
        Os arranjos, tanto de uma quanto da outra, têm zabumba, triângulo, coquinho, caxixi, block, pandeiro árabe e ganzá nas mãos de Bruno Santos. Têm ainda, a bateria de Luís Patrício e o pandeiro e a cuíca de Guilherme Kastrup, tudo ajuntado ao acordeon (Tatá Sympa), ao violão de náilon (Fernando Nunes), ao violino (Júnior Gaiatto), ao violão e ao banjo (Tuco Marcondes). A mistura confere à pisada riqueza surgida no calor e na fortaleza da cultura musical do Nordeste, com tempero das Gerais, coisa que o ouvinte num instantinho sacará, ainda que jamais tenha posto os pés naquelas terras nem os seus ouvidos nunca tenham sentido a sua plenitude.
        Para melhor avaliar uma cantora a quem nunca ouvimos antes, nada melhor do que ver como ela se sai numa música cuja gravação marcou época. E Patrícia Ahmaral brilha em “Mamãe Coragem” (Caetano e Torquato), com direito à citação de outra canção deles, “Deus Vos Salve Esta Casa Santa” e à levada pop de rico poder de arrebatamento... Caetano adorará ouvir.
        Com arranjo calcado em guitarras, violões e bateria, tendo o baixo a segurar as pontas e os teclados soando detalhes precisos, “De Romance” (Zeca Baleiro) realça a modernidade do cantar de Patrícia, quando a fortaleza volta a dar as caras e vigora a cantora poderosa que salta no escuro sem rede de proteção, voando pelo mundo que abre os braços e a acolhe.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Mário Sève e Cecilia Stanzione


Musicalmente necessário

        Logo que recebi Canción necesaria (Núcleo Contemporâneo), CD que reúne a cantora argentina Cecilia Stanzione e o compositor, arranjador e mago dos sopros Mário Sève, chamou-me atenção o título. Antes mesmo de rodar o disco pela primeira vez, pus-me a matutar sobre o seu significado.
        Que atributos a música deve ter para se fazer necessária? Será que é o momento pelo qual passamos que a torna importante a ponto de marcar uma etapa de nossa vida? Será que é uma harmonia bem trabalhada, um verso que diz o que não conseguimos dizer ou o som de um instrumento que atiçam a nossa emoção? Ou é o timbre de uma voz que se esgueira pelos poros, indo ao nosso âmago, atingindo o que temos de mais reservado, que faz uma canção ser, de fato, necessária?
        Uma música se faz imprescindível quando nos surpreende, quando nos pega de jeito, de uma forma para a qual não estamos preparados. Necessária é a música que se faz trilha sonora de um momento, tornando-se nossa parceira vida afora. Ela é necessária quando dela nos tornamos amantes confidentes, quando só ela nos desperta o choro ou a alegria. Necessária é a canção que nos faz reféns das garras do seu encantamento.
        Canción necesaria traz onze faixas de autoria de Cecilia e Mário: “Una Milonga” tem belíssimo arranjo de Gabriel Geszti, no qual pontificam o sax tenor de Sève, o violão e o baixolão de Rene Rossano, o cello de Lui Coimbra e o piano e o acordeon de Geszti. Com um singelo desenho melódico de seis notas (por vezes trocando a nota final) tocado pelo baixolão, ora só, ora com o piano, e que se repete desde a introdução até o final, vem a voz caliente de Cecilia Stanzione. Poderosamente afinada, criativamente emocionada, enquanto lhe dá ares épicos ela reforça a dor da canção, criando atmosfera lírica e sombria ao mesmo tempo. O diálogo da voz com o acordeon é rico em interpretações várias. O piano e o cello criam um módulo sobre o qual o arranjo flui como um rio tranquilo O sax se une a eles para, com a voz de Stanzione, encerrarem. Meu Deus, eis uma canção necessária.
        O violão toca desenho de simplicidade contagiante. A voz que dá início a “Justo Ahora” é de Ney Matogrosso – a levada da canção tem a cara das músicas em que Ney mais brilha, e ele não nega fogo. A puxada do baixolão carrega junto o sax e o violão. O arranjo de Mário Sève dá ainda mais sabor à música, ela que ganha muito mais peso quando Cecilia se junta a Ney, em preciso dueto com direito a vozes abertas. O intermezzo de sax e acordeon é papa fina. Com vocalises e o acordeon, vão ao final.
        Apenas a voz e o acordeon interpretam “Perfume de Violetas”. A simplicidade do arranjo de Gabriel Geszti permite que a voz de Cecilia ganhe profundidade. Carregando nos erres, ela se desvela em carinhosa e afinada interpretação, e seus agudos soam com a precisão de faca cortando manteiga.
        Canción necesaria é um trabalho que merece toda a atenção, pois se trata de um CD musicalmente necessário.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Coluna (reflexão) do Aquiles


Um pássaro chamado Sucesso

        Ele nasceu cego num ninho no forro de um velho teatro. Rejeitado por pais e que tais, foi abandonado para que definhasse sua solidão até que a morte viesse. A companhia teatral acompanhou o nascimento de sua plumagem e, mesmo sem compreender exatamente o que fazia ali aquele pássaro dia e noite, quase imóvel, no alto do madeirame que sustentava o cenário, aprendeu a conviver com ele. Era com se fizesse parte da montagem do espetáculo. Um ator a mais.
        O pássaro cego cresceu alimentando-se de palavra e música. Ousava voar quando se fazia o silêncio. Como um fantasma, conheceu cada canto do teatro. Deixava-se ficar por longo tempo nos camarins. As gavetas vazias, ah! Quanta magia naquela ausência de objetos. Gavetas prenhes de desejos, repletas de confidências não reveladas. Desejou morar numa delas. Sentindo o calor das luzes que emolduram o espelho, o pássaro cego tentava vislumbrar sua imagem. Em vão.
        Dia de estreia. “Lotação esgotada”, dizia a placa pendurada na bilheteria. A plateia rebuliça. A coxia treme. O pano sobe. As luzes acendem-se. O pano sobe, o espetáculo começa. Cai o pano.  Os aplausos vêm como uma chuva forte, torrencial. Imóvel, o pássaro vibra. O som das palmas entra por sua penugem e soma-se às palavras e músicas que lhe habitam o corpo.
        No proscênio o elenco agradece ao público. Acende-se um refletor em contraluz. Vislumbra-se uma sombra em silhueta. Num gesto teatral, a atriz principal olha para o alto. Todos acompanham seu movimento. Sua voz vem firme: “Pássaro que está prestes a morrer, para que tu não vás pagão eu te batizo. De hoje até tua morte inevitável e prematura, atenderás pelo nome de Sucesso.”
        Finda a temporada, novos teatros acolheriam a trupe que continuaria buscando fazer a emoção e o riso chegarem à plateia. Esta é a vida de quem vive para o teatro. Cada palavra, cada nota musical, é buscada dentro da alma e despejada sobre o espectador na esperança de vê-lo feliz.
        Pássaro espetáculo, Sucesso ama tanto o palco quanto ao ar que o sustenta em voo. Quando a cidade dorme, ele decola para sua missão: inocular o vírus do amor ao teatro nos que sonham. Movido por sua cegueira, ele “sente” quem devaneia. Em suas casas Sucesso pousa. Dá três batidas, como as de Molière, e as janelas abrem-se, como cortina do teatro.
        Iluminado na cegueira, Sucesso anuncia, em versos, os espetáculos que estão em cartaz na cidade. Envolto em panos teatrais, ele faz com que suas palavras invadam o coração daqueles que nas noites seguintes irão ao teatro. Sucesso voa, também, até a janela dos artistas que desafiam o tamanho das salas de espetáculos. Seja astro ou principiante, o pássaro invade seus corações, dando-lhes esperança e força.
        Sucesso volta ao teatro, adormece no camarim e sonha com Goethe, que recita a primeira frase de sua “Carta de Aprendizado”, escrita para o personagem Wilhelm Meister: "Longa é a arte, breve a vida, difícil o juízo, fugaz a ocasião (...)"
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4
PS. Aguenta firme, Doutor Sócrates!

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Antonio Adolfo


Os três mosqueteiros da música brasileira

            Guinga e Chico Buarque são compositores atemporais, suas músicas estão entre as que se perenizarão, cada vez mais, ao longo da história. Graças a seus talentos incontestes, são amados e tidos, pela grande maioria, como modelos musicais; mas são também contestados, há quem os veja como passadistas.
            O pianista e compositor Antonio Adolfo aderiu àqueles que distinguem a importância dos dois. E ao dedicar seu novo disco a uma parte de suas obras, Antonio avaliza seus talentos. Ao homenageá-los lançando Chora Baião (Antonio Adolfo Music), ele lança um novo olhar sobre eles. E para melhor assim ser, lá está sua musicalidade latente nas onze faixas do CD: cinco músicas do Guinga, sendo duas só dele e três em parcerias com Buarque, Celso Viáfora e Aldir Blanc; três do Chico e três do próprio Antonio Adolfo.
            Para realizar o trabalho, foi arregimentado um time de larga experiência e de alta qualidade: Leo Amuedo (guitarra), Jorge Helder (baixo), Rafael Barata (bateria), Marcos Suzano (percussão) e Carol Saboya (vocais), além do irrepreensível piano do dono do pedaço. Ao privilegiar os ritmos que dão título ao CD (o choro e o baião – gêneros nos quais Guinga e Buarque são mestres), ele faz com que o conjunto tenha uma unidade que só faz aguçar o prazer de ouvi-lo.
            A guitarra de Amuedo é movida a concisão: os solos são exemplos do menos que é muito mais. Seuintermezzo em “Dá o Pé, Loro” (Guinga), modelo de como a técnica e a emoção podem e devem andar juntas, eleva-o a uma categoria ímpar em seu ofício.
            O baixo de Jorge Helder traz a segurança de que todo grupo carece para se fazer mais suingado e coeso. Basta ouvir “Morro Dois Irmãos” (Chico Buarque) e sacar a justeza da pegada do cara.
            A percussão de Marcos Suzano, principalmente quando ele está ao pandeiro, impregna de brasilidade até samba de roda composto e tocado por dinamarqueses (com todo o respeito a eles, claro!). Para não dizerem que minto, lá estão ele e o pandeiro, brilhantes, em “Di Menor” (Guinga e Celso Viáfora).
            A bateria de Rafael Barata soa com a precisão dos grandes bateristas. Sua leve levada nos pratos, sem deixar que o som se espalhe em demasia em “Gota D’Água” (Chico Buarque), atesta isso.
Carol Saboya participa cantando “Você, Você” (Guinga e Chico Buarque). Sua voz, de afinação cristalina, está bem avivada pelo piano paterno que a acompanha como se a levasse pela mão num passeio à beira-mar.
            E tem tudo isso e muito mais. Pule de dez, tinha tudo para dar certo um CD no qual Antonio Adolfo se dispôs a juntar seu talento ao de Chico e Guinga. Deu! Discaço! Pois, convenhamos, som contemporâneo é a melodia rica que emoldura a harmonia iluminada por versos e/ou por instrumentos; som moderno é o talento que se revitaliza a cada acorde. Modernos e contemporâneos são Chico, Guinga e Antonio, eles que estarão sempre um passo à frente da modernidade de fancaria, sempre um compasso adiante do modismo de mercado. 

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4