A áurica voz de Áurea Martins
Depontacabeça (Biscoito Fino) é o novo disco da dama dos dissabores. Que, com bons arranjos do violonista Lucas Porto, tem no repertório músicas de diversos autores em parceria com Hermínio Bello de Carvalho.
Abrindo, Áurea canta “Me Diz, ó Deus”, uma das quatro parcerias de Hermínio com Moacyr Luz presentes no CD. O violão e a flauta são acompanhados por leve toque do tamborim. A potente voz de Áurea avisa: a emoção começou. O cavaquinho desponta. Entendendo o chamado, flautas e clarinete se juntam à bateria e o ótimo samba ganha peso.
“Isso é Que É Viver” (Pixinguinha e HBC): o surdo marca, o violão de sete cordas ponteia com as baixarias que dão cara ao samba. O sax sola o intermezzo. Áurea canta e demonstra que poucas intérpretes têm tanta sensibilidade para dividir frases musicais. E seus graves? E seus agudos? Raros!
Mais duas músicas de Moacyr Luz: “Quando o Amor Acaba” e “Só o Amor Constrói”. A primeira é emocionante. Suave, a introdução entrega à cantora numa bandeja de prata a possibilidade de ser ainda mais pungente. Acompanhada apenas por cello e violão, Áurea se desvela ao cantá-la. Para tocar a segunda, o violão muda a levada, mais balançada. O sete cordas e o bandolim se esbaldam no samba.
“Cobras e Lagartos” é grande parceria de HBC com Sueli Costa. O piano dá o clima de casa noturna. Apesar de se valer dos pratos, a bateria toca suave, como que para não atrapalhar os casais que bebem e se beijam. O bandolim sola bonito. Áurea volta e o bandolim continua com ela. Findo o canto, o bandolim segue. Belíssimo momento de depontacabeça.
Para encerrar, “Pressentimento”, obra-prima de Elton Medeiros e HBC, revela uma Áurea Martins com pleno domínio da voz e das emoções. Em clima de gafieira, com direito a naipe de trombone, sax, trompete, coro e tudo o mais, o clássico se junta a “Quem Disse Que Eu Mereço” (Dona Ivone Lara), que traz o poeta Hermínio cantando. Um final de fazer sangrar corações.
Como a samambaia chorona que se debruça sobre o xaxim e cai até quase beijar o chão, Áurea derrama seu dilacerado canto na terra que se abre em imenso poço, onde o sofrimento adquire o ar da música que o redimirá. Como um paiol de pólvora prestes a pipocar, ela se põe de cabeça para baixo e explode em mil cacos musicais.
Poeta sem certezas absolutas, aberto à dúvida e ao pé atrás, disposto que é a criar belezas inusuais, os versos de Hermínio capturam o simples, tornando-o ainda mais popular, e podem ser tão lancinantes quanto a voz negra de Áurea. Poeta que procura sons que lhes são bússola a apontar nortes e buscar caminhos sempre à frente, de tão musicais suas frases parecem ser escritas diretamente no pentagrama. Depois de ser cantado por grandes damas da música, ele tem a ventura de cair nos braços daquela que se revela uma de suas maiores intérpretes: Áurea Martins, a que consegue dar ao poeta a picardia definitiva e ser a parceira vocal que todo compositor merece e carece ter.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4
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