segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Coluna do Aquiles: Protestar é preciso


Protestar é preciso

      Quando é que o compositor decide fazer uma canção de protesto? Quando é que o poeta resolve se insurgir contra a injustiça, a esta dirigindo seus versos e não à sua amada? É no tempo de uma ditadura militar? É sob o jugo da repressão feroz que tortura e mata? É quando vê calarem sua voz pela força da censura? Claro que sim! Não necessariamente.
      Faço parte de uma geração de protesto. Criamos uma estética de contestação, por intermédio da qual nos rebelávamos contra a ditadura e a repressão da censura. Naquele momento (pós-1964, pós-1968), era a maneira que tínhamos de exercer nossa cidadania.
      À época, muitas vezes, elegemos algumas canções – que não protestavam contra a ditadura –, como símbolos da luta de resistência. João do Vale e seu “Carcará” são um bom exemplo, ele que não era o que se poderia chamar de um autor de protesto. Engajado? Talvez. Menos por isso e mais por nossa necessidade de vermos “revolucionários saídos do povo”, “Carcará” era um dos nossos hinos.
      Num momento em que o confronto com a censura era inevitável, todos temos histórias das quais saímos pouquíssimas vezes vencedores e, de outras tantas, remoendo uma raiva impotente pela derrota.
Em 1971, o saudoso Maurício Tapajós mostrou para o MPB4 uma canção que acabara de criar com Paulo César Pinheiro: “Pesadelo”. “(...) Você corta um verso eu escrevo outro (...)”. “Isto não passa na censura, Maurício!”, dissemos. “Se eu conseguir liberar vocês gravam?”, desafiou ele. “Claro!”, respondemos, incrédulos.
Maurício e Paulinho levaram à censura várias letras de ingênuas marchinhas de carnaval e, no meio do bolo, “Pesadelo”. O carimbo “liberado” foi batido burocraticamente em todas aquelas músicas para a festa, inclusive “Pesadelo”, que não tocou no Carnaval... Gravamos a música em 1972. Comemoramos e rimos como se a batalha houvesse sido ganha.
Em 1973, junto com Chico Buarque e Gilberto Gil, participávamos da Phono 73, cantando “Cálice”, dos dois, inédita à época. Na cabine de som do Anhembi, em São Paulo, um batalhão de censores acompanhava ostensivamente a “inocente” mostra de música.
Cantados os primeiros versos, os microfones “misteriosamente” emudeceram. Percebendo a manobra, nós mesmos, no palco, diante da plateia atônita, começamos a substituir por outros os microfones emudecidos pelos agentes federais. Foi uma sequência angustiante de “emudecimentos”. Ao final da batalha, um mar de microfones, mudos como os cantores, os compositores e o público. Essa nós perdemos e choramos de raiva.
Sempre haverá música de protesto. Haverá época em que canções serão criadas para protestar contra aquelas outras que já protestavam e cujas letras reclamavam contra injustiças e arbítrios. Dom e Ravel cantam “Eu Te Amo, Meu Brasil”; os Paralamas do Sucesso, “Trezentos picaretas com anel de doutor”. O Planet Hemp, a maconha... Tem lugar para todos.
Enquanto houver um poeta olhando a lua e um déspota no poder, haverá música de protesto.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Coluna do Aquiles, o CD da banda Caixa Preta

Jongo no liquidificador

            Em atividade há 12 anos, a banda vocal e instrumental Caixa Preta nasceu sob inspiração do jongo de mestre Darcy, um preservador do elemento da ancestralidade: os tambores do jongo, conhecido como a dança das almas.
            Foi a partir dessa fonte encantada, no morro da Serrinha, que fica entre os subúrbios cariocas de Madureira e Vaz Lobo, que os meninos da Caixa se deixaram impregnar pelo amor ao batuque. Desde então, cuidaram de amalgamar ao jongo diversas manifestações musicais que a ele conferissem modernidade. Começava a germinar ali Jongo Contemporâneo (independente), o segundo CD do grupo, cujo som reflete, a um só tempo, tradição e modernidade.
            A salada de frutas que compõe o repertório do álbum nasceu, basicamente, da concepção musical de Augusto Bapt, vocalista e autor das 11 faixas do disco – sendo quatro em parceria com Rodrigo Braga e uma com Seu Jorge e Gabriel Moura.
            Além do já citado Bapt, são mais quatro os integrantes que fazem o jongo contemporâneo da Caixa Preta: Kátia “Preta” Nascimento (trombone), Marcos Feijão (bateria e percussão), Robertinho de Paula (guitarra, violão de sete cordas e viola caipira) e Joe Lima (baixo e cavaquinho). Todos atentos à memória e à revitalização da cultura musical brasileira.
            Em “Cidadão Comum”, um rap marcado pelo baixo e pela percussão, a levada do jongo se mistura com a do samba e a do funk, resultando no suingue contagiante de um reggae. A célula rítmica, somada ao naipe de metais, se encarrega de materializar as síncopes e de dar a elas o ar sadio do presente.
            “Baile Funk no Terreiro” começa num maculelê (ou seria um funk?), que logo desdobra em samba. Não demora e o jongo chega arrepiando. E o som da Caixa Preta assume sua vocação maior: valer-se desse ritmo para criar uma miscelânea sonora de alta voltagem instrumental, dançante, vibrante.
            As congas iniciam “Onde Você Pensa Que Vai”. A guitarra marca presença. Os metais soam grave. O jongo está ali, vivo em estado primitivo, mas, ainda assim, contemporâneo.
            “Santa Ferveção” tem letra que denuncia: Santa ferveção/Da favela à beira- mar/A lei da pólvora está/Atirando flechas de contradição. Para cantá-la e tocá-la, a Caixa não economiza em dramaticidade. Nem na força da pegada pop.
            “Fogueira do Brasil” é samba que remete a um tempo em que protestar era preciso. O canto soa rascante – assim pede a letra. Os metais e os atabaques se espalham. A seguir, “Mangue de Sepetiba” tem baixo e o naipe de metais em ebulição. A bateria e a percussão brilham.
            E então o mangue dos subúrbios cariocas se une ao mangue do Capibaribe recifense. A música os faz gêmeos. E Chico Science e Augusto Bapt se tornam uma só voz. É a tradição das músicas carioca e pernambucana servindo ao mesmo propósito: atualizar-se para melhor cantar sua gente.
            Assim como a música pernambucana deve a Chico Science e Nação Zumbi a sua revigorização, o jongo deve a mestre Darcy e à banda Caixa Preta a sua contemporaneidade.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Túlio Borges, um talento (Coluna do Aquiles)


            Lá vem vindo o menestrel dos desatinos. Vem montado em seu cavalo baio. Magia perambulando infinitos, sobrevoando tempos, pressentindo vidas. Lá vem o poeta avoando, cavalgando um sonho avoengo. Carrega nas mãos o cálice da amarga verdade. Voeja buscando semear boas ideias em terras sãs.
            Ao vê-lo, uma mulher pergunta: “O que pretendes, senhor das noites?” “Deixo que a brisa toque”, ele responde. A mulher prossegue: “O que buscas, senhor dos dias?” “O sino em mim no tempo”, entoa o cantador. Um jovem se intromete: “Ora, mulher, deixe que o homem siga. Não vês que ele é doido?” “Doido só podes ser tu, meu jovem, que não vê arder no cantador a labareda do futuro e do passado”, retruca a mulher.
            Interrompendo o seu passar, o menestrel murmura alegorias... A mulher vira-se para melhor ouvi-lo e vê que quem acabou de lhe dirigir a palavra é agora um vulto que vai distante, em meio a denso feixe de estrelas. Ela acena, numa entristecida despedida. (O moço de há muito tomou outro rumo.) O silêncio se fez mais dolorido do que a solidão. Voltando-se para a mulher, o menestrel lança sua chama derradeira: “O vento sabe quando é tempo, e quando é silêncio entendo”.
A mulher e o moço são, claro, mera ficção. Mas os versos que compõem a fala do menestrel/cantador (“Deixo que a brisa toque/ O sino em mim no tempo/ O vento sabe quando é tempo/ E quando é silêncio entendo”) são da música “Eu Venho Vagando no Ar” (Túlio Borges), que dá título ao primeiro CD deste cantor, poeta e compositor.
            Borges fecha o CD com ela, cantando acompanhado apenas do violão de Rafael dos Anjos e do pífano de Davi Abreu. Rafael dedilha a introdução e segue junto com o pífano de Davi, prenunciando a profundidade do que cantará a voz aguda, firme e afinada de Túlio.
            Para abrir o disco, ele adaptou alguns “pontos” de domínio público que sempre ouviu D. Inácia (que o criou e trabalha com sua família há mais de 35 anos) cantar. Ela sola os versos que encerram a faixa. A percussão de Amoy Ribas realça a pueril candura de cada ponto, todos cantados doce e amorosamente por Túlio.
            Em “Toca Aí” (Túlio Borges), o violão de Rafael dos Anjos é tocado de forma a deixar a letra fluir: “Toca aí uma canção pra eu cansar de ouvir/ Uma canção pra eu pensar em mim/ Pra eu calar e tentar me ouvir/ Vou fechar os olhos/ Se eu chorar, continua/ Há muito choro em mim/ Por mil razões que eu sei/ E mais dez mil que herdei”. Modestamente, eu respondo a cada um dos versos: “Ela está aí, cantador, nós a ouviremos até nos encantar. Nós nos calaremos, poeta, e o ouviremos enquanto o refletimos em nós. Acompanharemos seu choro e seguiremos, pois ele e mil porquês habitam também em nós.”
            Construtor de melodias inesperadas, criador de poesia calorosa, a música de Túlio Borges tudo harmoniza em suave cumplicidade, com cuidadosa feitura. Seu CD independente Eu Venho Vagando no Ar traduz com música os sentidos e os sentimentos que são seus, mas também são nossos.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Clarinete e violão nas mãos de dois virtuosos (por Aquiles Reis)

Clarinete e violão nas mãos de dois virtuosos
(Aquiles Reis*)

        Está na praça e, como diziam os do meu tempo, também nas melhores lojas do ramo (ao menos deveria estar), uma joia em disco instrumental, que reúne dois grandes músicos brasileiros: Alessandro Penezzi e Alexandre Ribeiro.
        Alexandre Ribeiro, aos 18 anos, foi bacharelando em clarinete na Universidade Estadual Paulista. Seu instrumento soa com a delicadeza das asas de um beija-flor parado no ar, e seu clarone domina a cena com o seu som grave, avassalador.
        Alessandro Penezzi, violonista que se dedica especialmente às seis cordas, mas que também toca violão tenor, cavaquinho, bandolim e flauta. Bacharel em música popular pela Unicamp, desde 2005, ele trata o violão com tanto carinho que este o retribui com deferências mil.
        Agora, em 2011, os dois se unem em Cordas ao Vento (Capucho CDs Produções Artísticas). Um álbum com 12 faixas, das quais apenas duas, “Famoso” (Ernesto Nazareth) e “Chorinho Triste”, de João Dias Carrasqueira – cuja gravação conta com as flautas de seu filho, Toninho Carrasqueira –, não são de autoria de Penezzi.
        Um baião elegante, “Cordas ao Vento”, que dá título ao disco e abre os trabalhos, é homenagem de Alessandro a seu pai, Walkir Penezzi. Como em quase todas as outras 11 interpretações, Penezzi está no violão e Ribeiro, no clarinete. A palheta fraseia junto com as cordas. A harmonia propicia isto. A limpeza sonora demonstra a virtuosidade dos instrumentistas. A dinâmica realça a graça da melodia. E assim eles vão construíndo um disco, céleres e brilhantes. O clarinete capricha, num solo de primeira. O violão carrega nas tintas de uma forte pegada.
        “A Caminho de Casa” é um choro dedicado a Paulo Moura. O clarinete puxa a melodia. O violão faz as vezes de mestre de cerimônia (sem tê-la nenhuma!). Ambos os instrumentos se complementam, numa sequência executada em grande estilo. E seguem ressaltando nuances, unindo forças, que se mostram ainda mais joviais num intermezzo movido pela ímpar sonoridade dos dois instrumentos.
        “Famoso” (Ernesto Nazareth), cujo violão de Anibal Augusto Sardinha, o talentoso Garoto, eternizou, é vibrante em sua levada meio tango, meio polca, meio maxixe. O clarinete chora no ombro do violão. Juntos, recriam o ambiente dos antigos salões de baile. O suingue contagia.
         “Capitão Rodrigo”, choro amaxixado que Penezzi dedicou ao amigo Rodrigo Y Castro, conta com a flauta deste último. Sopro refinado. O pandeiro de Léo Rodrigues segura as pontas. O clarinete de Alessandro Ribeiro se soma ao sete cordas, ao violão e ao cavaco de Penezzi, cujo arranjo bem demonstra a sua versatilidade musical.
        “Vá Penteá Macaco”: em uníssono, violão tenor e clarone (que dupla, meu Deus!) dão início à faixa-símbolo da qualidade e da diversidade sonora do CD de Penezzi e Ribeiro. O tenor sola enquanto o clarone pontua (e para que mais?), incendiando a festa, fechando o CD.
        Reabri-lo, mais e muitas vezes, é questão de bom gosto e nexo musical.

*Aquiles Rique Reis, musico e vocalista do MPB4