segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles, o CD de Delia Fischer


Sagração à música

A pianista, compositora, cantora e arranjadora Delia Fischer lançou Saudações Egberto (Sesc Rio). Um disco em louvor à música de Egberto Gismonti.
Privilegiando composições já conhecidas do compositor, instrumentais ou não, mas que sempre encantaram dadas suas admiráveis qualidades, Delia deu mostras de profunda sensibilidade. Seu piano e sua voz, ungidos pela tranquilidade que vem com a maturidade, acrescentam nuances outras ao repertório de um dos nossos mais instigantes músicos contemporâneos.
Compositor pleno de soluções da mais absoluta imprevisibilidade, bem que Egberto merecia ser revisitado por alguém com a disposição de repensá-lo e de dar à interpretação sua própria linguagem musical, livre de qualquer pré-conceito já cristalizado. E é exatamente isso que Delia traduz em cada uma das treze faixas escolhidas para seu álbum: um jeito só seu de fazer com que as canções de Egberto soem como o ar puro que se revigora após o temporal. Tudo isso, aliado à impecável técnica que Delia tem como pianista, dá a Saudações Egberto tamanha unidade que faz dele um disco de consistente encorpadura.
A contemporaneidade logo dá as caras com “O Sonho” (Gismonti). O arranjo é do “pirulito carijó” (quando algo era muito bom, dizia-se assim lá em Niterói). Moderno, refaz o caminho sonhado por Egberto. O teclado de Sacha Amback desconcerta, tal a sua capacidade de proporcionar ligação entre a percussão (intensa) de Naife Simões, o violino e o cellolino (com pizzicatos primorosos) de Pedro Mibielli, o baixo (seguro) de Pedro Guedes e a voz e o piano de Delia Fischer.
Segue-se “Lôro – Cor de Sol” (Gismonti e Eugenio Dale). Delicado, o violão começa. Delia inicia o canto. Seu piano se junta ao bandolim (Pedro Mibielli). A melodia de Egberto agradece o carinho. O intermezzo de piano tem a bateria em batida leve, mas firme. Ao voltar o canto, a caixa soa uma levada de maracatu. O suingue aumenta. O piano brilha; bandolim e violão também. A harmonia se mostra plena em sua concepção original, acrescida por criativas inserções.
O piano começa a versão instrumental de “Palhaço” (Gismonti e Geraldo Carneiro). A delicadeza está em cada tecla percutida por Delia. O violino e o flugelhorn (Naife Simões) criam sonoridade ímpar. Logo o violino faz belo solo. O piano o acompanha, até puxar para si o improviso. O piano sola. A sonoridade do flugel e do violino volta a protagonizar. O piano retoma, o violino se junta a ele. Volta o som do violino e do flugel... Meu Deus!
E tem ainda Egberto tocando violão de 10 cordas na sua “Saudações”; Paulinho Moska cantando com Delia “Um Outro Olhar – Pêndulo” (Gismonti e Ronaldo Bastos), ela que por sua vez vai de Fender Rhodes em “Dança das Cabeças” (Gismonti) e, só com o seu piano, canta “Auto-Retrato” (Gismonti e Geraldo Carneiro), um monumento à solidão, doce utopia.
Ao homenagear Egberto Gismonti, Delia Fischer consagra a música, faz dela um testemunho de fé no músico brasileiro.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Memórias, última parte


Fim de temporada no Leblon

Hoje eu acordei com a macaca; a cobra vai fumar; eu estou é com a cachorra. Para além de parecer palpite para terno de grupo no jogo do bicho, esse foi o sentimento que me assaltou quando abri os olhos.
Que manhã de sol, meu Deus! Domingo como há muito o Leblon não via. Nuvens batiam em retirada, empurradas por um final de sudoeste frio que a tudo limpa e regenera. Pulei da cama com entusiasmo quase juvenil para quem ainda carregava na memória os fatos lamentáveis do domingo anterior de sol no Leblon, após tanto tempo afastado.
Num arrepio, a cena dantesca de corpos seminus amontoados no calçadão da praia voltou a me assombrar. Nunca poderia imaginar que causaria aquele engavetamento erótico só porque, subitamente, me abaixei para amarrar o cadarço do tênis. Com pavor, revi a cena de arena de circo romano, quando ao apontar as Cagarras, acertei um direto no queixo de um lutador de jiu-jitsu que passava acompanhado do seu dogue alemão. Scud, assim chamavam o meu quase carrasco, o que quase me levou pro solo e me fez mulher, como diria o sábio-erótico Wando.
Abri os olhos disposto a esquecer qualquer desventura que pudesse macular aquele azul suave que descia à terra. Nem mesmo a lembrança incômoda daquele encontrão desajeitado que tive de aplicar num poodle, que quase o jogou no mar e me tirou o bom humor. Fomos.
Vejo que Chico Buarque caminha rapidamente em nossa direção. Pronto, pensei, mais um que vai passar batido... O cumprimento vem acompanhado de um sorriso largo. Olho para minha mulher, sua cara é de incredulidade. Sorrio como quem diz: "Viu só?"
Seguimos felizes. Estava linda a minha mulher iluminada pelo sol. Foi quando uma lufada de vento carregou-lhe o chapéu de palha molenga que a protegia. Disposto a impedir que aquilo pudesse atrapalhar nossa dia, saí desembestado atrás. Fintas, volteios, subidas bruscas, descidas em espiral, ziguezague pra cá, ziguezague pra lá e eu, já tonto, perseguindo o chapéu de palha molenga da minha mulher. Por entre os carros, dentro d’água, no meio do vôlei. Meu Deus! Estava tomando um baile do chapéu de palha da minha mulher molenga, ou melhor, do chapéu molenga da mulher de palha... Xiii!
Mas aqui já é a entrada do Túnel Rebouças? O chapéu entrou. "Táxi, siga aquele chapéu!", ordenei. Já sem fôlego, percebi que àquela altura o helicóptero da Rede Globo mandava imagens da "obstinada perseguição" para todo o Brasil.
As pessoas vaiavam a cada drible que eu levava. Surdo pelo cansaço, eu ainda conseguia ouvir sons distantes: "Esse velho vai morrer" e "Calma, coroa". Linha Vermelha, e o chapéu de palha molenga da minha mulher acabando comigo. Chego à Pavuna: Via Dutra – São Paulo a 426 quilômetros. Agora não tem mais volta, pego essa droga de chapéu nem que seja lá no Paraíso.
Pronto, estou em casa. O chapéu, amarrado ao pé da mesa, parece que ri. "Alô! Nilza, pegue a primeira ponte aérea e volte para casa, tá? Estou te esperando. Um beijo".

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Mais memórias

Um falso paulista na ilha do Leblon

Com o sábado acabando, fui dormir animado. Amanhã será o grande dia. Após um tempão, estou de volta ao Leblon, ilha que tem, à frente, o mar; à esquerda, o canal do Jardim de Alá; à direita, o canal da Rua Visconde de Albuquerque e atrás, a Lagoa Rodrigo de Freitas.
Tentando aparentar modéstia, fui logo prevenindo minha companheira: “Olha, Nilza, não sei se teremos tranquilidade na caminhada que faremos amanhã pelo calçadão. Provavelmente a cada passo serei abordado por velhos conhecidos, alguns poucos e bons amigos que cultivei na época em que eu fui morador do Leblon. Peço-lhe um pouco de paciência e compreensão, afinal, há tempos sem passear pela praia numa manhã de domingo, terei que atender a todos”. Dito isso, apaguei a luz e não dormi. Como dormir imaginando a cena gloriosa que eu já antevia para o dia seguinte?
Acordei com o sol entrando pelo quarto. Levantei-me discretamente pensando: “Teremos um longo dia pela frente”. Mas não custa nada disfarçar o paulistês da minha linguagem. Já pensou entrar num bar, o Bracarense, por exemplo, e sapecar: “Três pastel e um chopps, faz favor, belo”? Não tenho nada a esconder, mas nesse primeiro domingo seria legal não dar muita bandeira.
Paramentado, segui em direção ao calçadão, palco da minha volta triunfal ao convívio com os cariocas do Leblon. Levando Nilza pela mão, respirei fundo e pisei nas pedras portuguesas como quem pisa num tapete de memórias: “Vamos andar até o canal do Jardim de Alá”, sugeri. Trinta metros de caminhada, se tanto, o cadarço do meu tênis novo desamarra. Displicentemente, como convém a um típico morador do Leblon, me abaixo para amarrá-lo. Pra quê, rapaz! Uma senhora que vinha logo atrás de mim quase montou nas minhas costas. O casal atrás da senhora trançou as pernas no pescoço da coroa e assim, sucessivamente, corpos seminus e bronzeados foram se embolando numa cena dantesca e imoral que se estendeu até a Avenida Niemeyer. Não fiquei pra ver, mas ouvi dizer que os bombeiros vieram com um carro pipa para separar os corpos engavetados.
Depois de muito procurar, encontro a Nilza aos prantos. Para acalmá-la, aponto na direção das ilhas Cagarras. Estranho... Não me lembrava de que no meio do calçadão tinha um muro. Que muro coisa nenhuma! Ao esticar o braço, encaixei um direto na orelha amarrotada de tanto esfregar no tatame de um garotão que levava um dogue alemão pela coleira. A galera chegou junto. “Beleza, Scud, bota o paulista pra dormir.” Que apelido singelo, o do cara, não? “Scud”! Um fofo. “Aí, Isshcud, leva o velhote pro chão e finaliza ele.” Me senti numa arena com o povo pedindo meu sangue. O tal do “Scud”, sensível e generoso, ainda meio zonzo, decretou: “Deixa o coroa ir embora, esse cara não dá nem pra saída.” Ô homem bom, esse “Scud”.
Chamei minha companheira e segui caminho. Prudentemente, ela perguntou: “Vamos voltar pra casa?” De jeito nenhum! E os meus conhecidos? Seguimos caminho.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Coluna do Aquiles / Memórias

O dia em que o passado voltou
Cai uma garoa fina. Minha nau capitânia desliza cuidadosamente rumo a uma terra distante. Velas ao vento em direção ao descobrimento do presente desconhecido. A neblina desce como uma cortina pesada sobre o passado que carrego como um fardo. Não estou nem alegre nem triste, apenas navego. Não estou cansado nem desperto, apenas sigo. Levo na mala as recordações e uns poucos sonhos. Carrego o medo de monstros que nunca vi, mas sei que existem.
Após mais de um quarto de século, as correntes me arrastam para uma ilha que já conheci bem. Lá, nessa pequena ilha, já fui de casa. Hoje, lá, não guardo mais tesouros, apenas memórias. Nessa ilha, hoje não tenho mais amigos, apenas conhecidos. Gente que fala uma língua que quase não entendo, linguagem que expressa o que não sinto mais, e que talvez nunca tenha sentido.
A nau busca o destino. Sinto frio. Um frio na alma, dentro de um corpo que traz marcas de tatuagens de serpentes e corações de mães. Alma que transborda emoções que não se contentam em estar ali, querem voar.
A placa presa no bico de uma impávida gaivota anuncia: “Leblon à esquerda”. Instintivamente giro o leme para onde a seta aponta. Lá é a minha ilha, penso, depois de tanto tempo nela aportarei outra vez. À frente, o mar. À esquerda, o canal do Jardim de Alá. À direita, o canal da Rua Visconde de Albuquerque. Atrás, a lagoa Rodrigo de Freitas. No meio, um dos meus passados. E lá nesse meio um filho, o mais velho.         
Recebo-o na sala do apartamento onde passarei os próximos trinta dias. Ele olha ao redor e, súbito, seus olhos estancam na garrafa de Fernet Branca, minha bebida amarga, forte e favorita desde sempre. “Pai, essa garrafa já estava aqui ou foi você quem trouxe? Eu me lembro desse desenho no rótulo, dessa águia. Puxa vida, pai, já faz tanto tempo, como é que eu ainda me lembro?” O que responder? Não tem resposta não, filho. Você não esqueceu. Só isso. Quando deixei a ilha, filho, você era bem pequeno, passeávamos na calçada, íamos à praia, você e sua camisa do Flamengo, lembra? E o dia em que você corria sozinho pela beira d`água e uma onda o derrubou, lembra? Lá atrás, tentei voar para alcançá-lo. Seu pai não sabe voar, filho. Quando deixei essa ilha, filho, você me acompanhava por botecos que me serviam a cerveja que prenunciava a partida.
Hoje fomos beber chope no seu bar, servido pelo seu garçom. Andamos pelas ruas da sua ilha, filho. As noites do Leblon, filho, agora são suas. Você as conquistou com sua maioridade e sabedoria.
Leve-me por aí, mostre-me o que já conheci, lembre-me do que nunca esqueci, faça-me voltar o tempo de quando nos separamos, diga-me que nada foi em vão. Enquanto minha nau estiver aportada nessa ilha, filho, será como a volta do passado ao seu porto. Serei, por um breve tempo, um ilhéu antigo. Falarei sua língua, sentirei seu tempo passar e me permitirei lembranças boas e más. Serão as lembranças que levarei quando eu voltar a partir.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4